A crise da certeza, a visão ampliada e a montanha-russa

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Amanda Maciel Carneiro.

O final do século XX foi marcado, no campo científico, pelo que se conheceu como “a guerra das ciências”, um debate entre cientistas investigando a própria ciência como fenômeno social, levantado questões sobre a natureza, a validade do conhecimento, a relação entre conhecimento e realidade e o papel da ciência, dentre outras coisas (SOUZA SANTOS, 2004). A guerra das ciências é o momento que ilustra tanto o cenário de crítica quanto a resistência dos criticados, relacionando a estes os que não estão de todo abertos a repensarem a ciência e, de alguma forma, se sentem afrontados com tais questionamentos. Relacionados a estes, resistências surgem em vários aspectos, como a preservação de um campo com prestígio, a defesa de interesses, motivações políticas e violações de ética acadêmica, dentre outros, quando o que devia ser levantado eram benefícios, malefícios, impactos, limitações, alcances e papéis da ciência e dos cientistas (SOUZA SANTOS, 2004).

Quando vista sob ótica da crítica reflexiva, são interessantes os questionamentos de Boaventura de Souza Santos, em obra de trinta anos atrás, ao reconhecer que as perguntas simples deveriam voltar a serem feitas (assim como o fez Rousseau duzentos anos antes). Papel, utilidade, contribuição positiva e/ou negativa, relação entre ciência e virtude, entre rigor e riqueza, todas elas são questões antigas e novas, sempre atuais, e que ganham ainda mais força quando consideramos ambientes dinâmicos, complexos, instáveis, sempre em mutação, para os quais entende caber a relevância de vários modos de conhecimento (SOUZA SANTOS, 1988).

Todo esse cenário expõe um repensar da ciência tradicionalmente considerada moderna, repensar esse que busca ampliar a ciência e o conhecimento sobre a ciência numa perspectiva de contexto, de análise de condições, interações e impactos. Nesse sentido, Souza Santos defende um novo paradigma emergente, especulativo, sob o qual se assentam quatro afirmações relacionadas à globalidade e totalidade, conhecimento e auto-conhecimento, criação de novo senso comum, com especial atenção para a que enfatiza que “todo o conhecimento científico-natural é científico-social” (SOUZA SANTOS, 1988) – com a qual se faz conexão com a posição defendida por Latour (1994) acerca da existência dos “híbridos”, os quase-objetos, marginalizados e em constante proliferação – tudo aquilo que é tudo ao mesmo tempo. Aqui se vislumbra o reconhecimento da inexistência e impossibilidade do isolamento entre natureza e cultura.

Outro ponto levantado nas reflexões que marcam esse momento de crise, de desafio e de crítica, diz respeito ao fato de que a ciência moderna, de acordo com Souza Santos, se pauta no fundamento de que a descoberta da natureza isola as condições iniciais relevantes, e supõe que o resultado sempre será o mesmo independente do lugar e do tempo, dadas as mesmas condições; considera, assim, objetos, sujeitos e fenômenos como estáticos, previsíveis e controláveis (SOUZA SANTOS, 1988).

Fonte: Folha de São Paulo (2018)
Pode, nesse momento, ser feito um novo paralelo com a famosa obra de Latour, “jamais fomos modernos”, quando Souza Santos discorre sobre o que para Aristóteles seria a causa formal, que prioriza o como as coisas funcionam, ao invés da finalidade e da intenção (SOUZA SANTOS, 1988); neste sentido, é permitido intervir no real, sem a respectiva responsabilidade das transformações trazidas pelo “conhecer”. Na obra de Latour, essa característica é latente na ciência “que se diz moderna, e não o é” como um todo, que, além de diferenciar e separar cultura, natureza e discurso, criando o que ele chama de “híbridos”, consegue aparentemente atuar legitimamente de forma estanque, em compartimentos separados, criando várias das disfunções e mazelas que existem no mundo atual. Daí um de seus principais argumentos da impossibilidade da modernidade pela impossibilidade de separação e purificação dos sujeitos e dos objetos (LATOUR, 1994) – a impossibilidade de controle, de separação e classificações rígidas, de certezas absolutas, de uniformidade de espaço e de tempo e uma linha contínua e sem sobressaltos.

O que está em questão, aqui, sobrepondo-se à rótulos, categorizações e épocas, é a maneira como a própria ciência se faz e se apresenta; o que defende, como se manifesta, como se protege e se blinda, os espaços para repensá-la e as reflexões e críticas que vão surgindo, pouco a pouco, com o despertar para as reflexões ontológicas e epistemológicas.

A crise, aqui, não é a da ciência como ato de conhecer a natureza; isso se crê que faz parte dos anseios dos homens desde que assumem a característica de sapiens sapiens. A crise não é o fim de tudo; é parte do caminho – é um dos loops de uma montanha-russa sem fim. Nesse momento, ela se reveste de crítica ontológica, epistemológica, metodológica, paradigmática; se dá no seio da própria atividade científica, pelos cientistas problematizando a sua prática, aprofundando seu relacionamento com ela, buscando respostas às suas incertezas. Não só dos cosmos, mas dos porquês, das consequências, do compromisso com as externalidades, da aproximação com a realidade, das limitações da ciência – e de como, por essas limitações, ela é mais real do que o é quando se afirma, lá de longe, verdadeira. Do reconhecimento de que o acesso ao mundo se realiza por olhares, representações, misturas, complexidades, e de que a ciência é o teatro que fazemos de todas essas costuras. Sim, as coisas existem, mesmo quando não são observadas; mas o contato, que passa pelo olhar, faz o viés.

Nas palavras de Souza Santos, que não são um resumo, pois são um começo, a crise da qual falamos irrompe na emergência de um paradigma que lida, sobretudo, com a revisitação dos limites, com a fragilidade dos pilares da ciência como a conhecemos, e com a superação de distinções “natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” (SOUZA SANTOS, 1988, p. 61). O reconhecimento dos híbridos, do complexo e entremeado (LATOUR, 1994).

É nesse teatro da vida, olhado com a seriedade que a ciência exige, e com a humildade da compreensão de que todos somos partes de tudo, de que os limites belamente se confundem, que acessamos, refletimos, experienciamos e representamos o melhor que podemos da realidade.  

Os ganhos dessa visão temática, defendida por Souza Santos (1988), coletiva, defendida por Latour (1994), e ampliada por ambos, são inimagináveis e transformadores. A desconstrução da certeza equivale ao não se segurar demasiadamente no carrinho da montanha-russa, e deixar-se fluir com o movimento, divertir-se no caminho, entrar em contato. Parafraseando Souza Santos (1988), aproveitar a experiência exercendo a incerteza e insegurança ao invés de opor resistência, avançando e acessando o conhecimento, dentro do possível, de forma mais profunda.

Referências:

FOLHA DE SÃO PAULO. [Imagem de montanha russa.] In: FOLHA DE SÃO PAULO. Falando russo: como se chama 'montanha-russa' no país da Copa? 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/amp/esporte/2018/07/falando-russo-como-se-chama-montanha-russa-no-pais-da-copa.shtml>. Acesso em: 27/09/2019.
LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
SOUSA SANTOS, B. Introdução. In: SOUSA SANTOS, B. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 17-27. 
SOUSA SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.

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