As demarcações necessárias

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Gabriel Marmentini.

Demarcar a ciência me parece algo natural em uma sociedade que gosta de demarcar as coisas. Quanto mais limites criamos para alguns campos, mais controle podemos exercer sobre eles. Mais barreiras podemos criar para que novatos adentrem nos mesmos. Mais status pode-se atribuir a quem tem o êxito de estar circunscrito a algo tão bem demarcado e difícil de pertencer. Mas nada disso precisa ser necessariamente negativo, como minhas palavras anteriores tendem a apontar, propositalmente. Ter limites, controle, barreiras e critérios pode servir para dar mais legitimidade, processualização e organização a determinado conceito, atividade ou grupo de pessoas. Eu gosto da demarcação e meu argumento é que dela precisamos. Ao longo do meu escrito tal argumento se tornará mais sólido.

A cada linha lida de Demo (1985) nos sentimos provocados. Posso não ter compreendido ainda tudo que li, mas entendi o suficiente para dizer que, sem dúvida, trata-se de uma leitura fundamental na trajetória do pesquisador. Assim como eu, ele entende que a realidade nunca será suficientemente estudada, sendo o ofício de um professor-pesquisador uma eterna jornada. Uma mistura de humildade com realidade nos leva a entender que a ciência inacabada e inacabável, como ele diz, deve ser novamente interpretada, se iniciando, talvez, por sua des(singularização). Em outras palavras, a ciência é plural. Se há pluralidade de ideias, haverá pluralidade de conceitos. O fazer ciência vem de diferentes fontes, pessoas e campos do saber. Não há um único conjunto de critérios de cientificidade. Não há uma abordagem metodológica melhor que outra. Não há um grau correto de senso comum e um grau correto de ideologia permitidos em uma investigação. O que temos de sobra são problemas, leia-se perguntas, aguardando por soluções, leia-se respostas. É isso que os pesquisadores precisam: fazer boas perguntas para que a partir delas busquem boas soluções, tendo sempre como ótica a pesquisa que faz sentido (ALPERSTEDT e ANDION, 2017). Nós fazemos ciência diariamente, seja em laboratórios e com jalecos brancos, seja dentro da universidade, seja interagindo com as nossas comunidades e organizações. Ciência se tornou um termo rebuscado, distante e um tanto chique. Precisamos ressignificar a ciência.

No campo musical, estilos são demarcados. No campo artístico, obras são demarcadas. No campo da literatura, escritos são demarcados. No campo social, muitas coisas são demarcadas por meio de políticas públicas. E vamos com calma, pois demarcar não precisa ser sinônimo de um pensamento reducionista e cartesiano, tampouco associado aos adjetivos que citei no primeiro parágrafo de modo negativo. Como eu disse, façamos o exercício de pensar na demarcação como uma ação de legitimidade interna para diversas questões, não querendo excluir ninguém ou formar clubes que tendem a se transformar em bolhas, mas mostrando o quão diverso é o campo científico e que todos têm uma contribuição e merecem ser respeitados. Temos que aprender que a demarcação na era da complexidade deve ser acompanhada de muito respeito ao contraditório e abertura para o diálogo.

Eu, por exemplo, acho uma perda de tempo discutir se Administração é ou não ciência. Perda de tempo no sentido de quem está contra nós, pois aos que escrevem a favor e defendem nosso campo temos que agradecer pelo esmero e paciência. Gostaria que alguém me explicasse o sentido em sermos uma "ciência menor" sendo que, além de avançar o conhecimento científico, trazemos soluções práticas ao mundo, diferente de muitos outros campos do saber, diga-se de passagem. Não, não quis ser irônico. Eu consigo compreender e respeitar que a ciência, por ser plural, cumprirá com sua função social de diferentes formas, em maiores e menores graus. Pois avançar o conhecimento científico, mesmo que sem aplicabilidade direta ou imediata, também é uma função social. Enfim, mais do que divisões, precisamos nos unir. Se o sistema de demarcações científicas funcionasse da forma que imagino, seria incrível ver a união entre diferentes tradições, como aponta Kneller (1980), seja para criar novas teorias arraigadas na heteronomia, seja para revisar pressupostos de ambos os lados de forma colaborativa.

Kneller (1980) diz que levará muitos séculos para a ciência alcançar completude em suas explicações para a ordem natural. Muitos séculos me parece até otimista, visto que tendo a pensar que até lá, muitas outras coisas já terão caído por terra e outras perguntas terão emergido. Os escritos também se complementam pois ambos partem da premissa da autocrítica necessária aos pesquisadores. É dela que virá nossa capacidade de crescer continuamente e de contribuir para a evolução do campo científico. E é justamente o que estou propondo neste pequeno escrito, que façamos uma profunda autocrítica. Precisamos, o quanto antes, entender que partimos sempre de um objeto construído, que temos visões de mundo e trajetórias diferentes e que nosso fazer ciência nem sempre será igual. Contudo, isso não me faz melhor ou pior do que outro cientista ou outra corrente de pensamento. Quando falo da demarcação, penso ser uma forma legítima da ocupação do espaço científico pelas mais diversas correntes, não havendo um limite, visto que a ciência, em si, é ilimitada. Talvez seja uma forma de contribuir para o avanço da filosofia das ciências (JAPIASSU, 1991).

Referências:

ALPERSTEDT, G. D.; ANDION, C. Por uma pesquisa que faça sentido. Perspectivas. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 57, n. 6, nov-dez. 2017, p. 626-631.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.
KNELLER. G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.

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