A fenomenologia das eleições

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Barbara Lorenzoni Basso

“Mother do you think they'll drop the bomb?
[…]
Mother should I build the wall?
Mother should I run for President?
Mother should I trust the government?”
(Pink Floyd)

As eleições presidenciais que estamos vivendo parecem estar dividindo o Brasil ao meio. As pessoas defendem seus candidatos expressando suas opiniões e divulgando muitas informações – nem sempre verdadeiras – tanto sobre o candidato de sua preferência como de seu adversário. Essa disputa já  desfez muitas amizades e gerou diversos conflitos. Isso porque ao ouvir as opiniões de algumas pessoas pensamos “como eles podem pensar assim? Não é possível que não enxerguem a realidade”. Mas muitas vezes as pessoas que emitem opiniões que nos parecem absurdas são muito próximas e queridas. Então me peguei pensando: mas o que é a realidade?, como posso tentar entender o ponto de vista deles, a sua realidade? – afinal, são pessoas que amo e admiro, algo deve haver de coerente em suas posições.

James (apud SCHUTZ, 2002) dizia que as pessoas podem pensar de modo diferente sobre o mesmo objeto – e que elas são capazes de escolher a qual desses modos de pensar querem aderir ou qual preferem ignorar. Podem existir, segundo o autor, diferentes ordens da realidade, diferentes subuniversos, diferentes mundos. Deve ser isso: estamos olhando para as eleições a partir de diferentes mundos. 

Decidi, então, buscar na fenomenologia de Husserl (2008) uma forma de olhar para o fenômeno em questão, buscando uma análise compreensiva. Para isso seria preciso colocar o mundo “entre parênteses”: eu deveria deixar de lado os preconceitos, teorias e definições que costumo utilizar para conferir sentido às coisas, pois só assim seria capaz de enxergar o fenômeno em sua totalidade, de maneira direta, sem a intervenção de meus conceitos prévios.

Aceitei o desafio e mergulhei nas leituras acerca dos candidatos, seus partidos, suas propostas de governo, seus antecedentes políticos, suas biografias, suas trajetórias políticas e acadêmicas, os processos contra cada um deles, suas opiniões com relação a diferentes propostas de leis, etc. Procurei ao máximo buscar a informação em fontes confiáveis e evitar as fake news, tão difundidas nesses últimos meses. Como resultado de meus estudos, entendo que Haddad e Bolsonaro representam mundos diferentes porque partem de modos diferentes de entender o funcionamento do mundo: partem de ontologias distintas. Também acreditam em caminhos diferentes para produzir conhecimento, para gerar progresso/desenvolvimento... É isso! – pensei – eles se baseiam em epistemologias distintas!

Haddad vem de bases da dialética materialista-histórica de Marx (2011), acredita na história como explicação para as teses e antíteses presentes em nossos dias e entende que as tensões precisam ser superadas para chegar às sínteses. Muito influenciado por Marx, entende as classes dominantes como a tese e o proletariado – as classes oprimidas, as minorias – como antíteses. E, como Marx, entende que é preciso dar voz e poder ao proletariado para que se produza a síntese. Essa visão, obviamente, recebe críticas: a crítica daqueles que questionam o que acontece quando o proletariado chega ao poder – cria-se uma nova tese de dominação, dessa vez protagonizada pelos oprimidos? O proletariado no poder passa a agir como antes agiam os dominantes e abusam do poder que agora têm? São também criticados pelos pragmáticos, que criticam o fato de a dialética não conseguir propor um ponto de vista analítico que permita uma visão diferente daquela dos atores analisados (Barthe, 2016). Isso pode levar a um foco demasiado nas críticas levantadas pelos oprimidos, sem levar-se em consideração que elas podem ser críticas parciais e pode ser necessário um olhar mais amplo sobre o problema. Também pode levar a entender que a solução necessária é sempre aquela reivindicada pelos oprimidos, sem fazer um esforço de análise mais amplo para entender quais são as competências críticas que eles possuem e quais dispositivos lhes faltam para permitir o desenvolvimento e ampliação de suas capacidades. E certamente um presidente da república deveria ser capaz de entender as necessidades das diferentes classes, as contradições existentes e os instrumentos necessários para oferecer dispositivos aos atores que os permita ampliar sua capacidade crítica e seu acesso aos apoios materiais e organizacionais que necessitam.

De outro lado, Bolsonaro parte de uma visão utilitarista, como a de Bentham (1979): busca maximizar a felicidade geral da nação, entendendo que o que os brasileiros buscam é maximizar sua felicidade, seu prazer, e minimizar sua dor. É uma visão epistemológica bastante comum e recorrente em nossa sociedade, que segue as mesmas bases do positivismo que nos empresta o lema de nossa bandeira. Parte de cálculos claros de custo-benefício, buscando sempre uma otimização de recursos com o objetivo de maximização da felicidade. Presume que o comportamento da sociedade é previsível e que todos buscam seus objetivos individuais – e, para atender aos objetivos individuais, é preciso fazê-lo de forma a satisfazer o máximo de pessoas possível, focando nas consequências, no que será gerado para a sociedade. É uma lógica, no entanto, que prefere “matar 1 para salvar 5” (como nos problemas propostos por Sandel, 2015), que aceita a infelicidade de alguns para poder garantir a felicidade de muitos. É, portanto, uma visão que privilegia a maioria e aceita que as minorias não tenham a mesma felicidade da maioria, já que a soma geral garantirá a maior felicidade possível para a sociedade. Outra crítica a essa visão é o fato de que ela resume o indivíduo à sua utilidade e não prevê a existência de direitos individuais fundamentais básicos que precisam ser respeitados acima de qualquer utilidade.

Com essa reflexão, entendi que os candidatos estão dividindo o país por olharem para o Brasil com lentes epistemológicas diferentes. E ambos terão apoiadores - que enxergam como eles - e críticos às suas visões. Ambos levantam questionamentos: Poderá um presidente governar apenas para a maioria? Poderá um presidente governar de forma a dar poder aos oprimidos? É possível um presidente que resume os cidadãos à sua utilidade e não defende seus direitos individuais? É desejável um governante que permite aos oprimidos chegar ao poder apenas para tornar dominante quem antes era dominado?

Não pretendo aqui defender um lado ou outro ou revelar minhas preferências em relação aos candidatos. Mas convido a uma reflexão sobre a forma como cada um de nós enxerga o mundo para que no próximo final de semana possamos votar naquele que mais estiver de acordo com nossas visões ontológicas e epistemológicas.

Roger Waters (Pink Floyd) - Mother - LIVE 2018.

Referências:
BARTHE, Yannick. Sociologia pragmática: guia do usuário. Sociologias. Porto Alegre, RS, 2016.
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Editora José Olympio, 2015.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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