A Escravidão como atividade econômica na perspectiva das teorias da ética Kantiana e Utilitarista

Pequeno ensaio produzido pelo aluna de Mestrado Acadêmico Mariana Carneiro Fraga

A escravidão foi uma das principais atividades econômicas durante milhares de anos ao redor do mundo. Sua origem é pouco conhecida, alargando-se a partir dos conflitos entre os povos, resultando no acúmulo de prisioneiros de guerra. Vale destacar que algumas culturas com um forte senso patriarcal reservavam, à mulher, uma hierarquia social semelhante à do escravo, negando-lhe direitos básicos que constituiriam a noção de cidadão.

Por escravidão, em geral, entende-se a apropriação arbitrária, legalmente aceita, de alguns indivíduos sobre de outros. Esta prática definia os escravizados como mercadorias, e seus preços definidos conforme suas condições físicas, utilidades, sexo entre outros. A compra e venda de pessoas consideradas propriedades e, posteriormente, o tráfico escravo, foram amplamente praticados,influenciando diretamente o desenvolvimento econômico pelo menos até o século XIX. 


A escravidão sob a perspectiva ética, pode ser analisada de diversos ângulos, dos quais delimitar-me-ei a partir de duas teorias filosóficas,onde comportamento humano é posto em análise sobre o agir como dever ou como ato útil. Sendo assim, busco neste ensaio, analisar a escravidão da perspectiva da ética kantiana bem como da ética utilitarista, enquanto um discurso de desenvolvimento econômico do ponto de vista atual.

Se a escravidão foi, durante muito tempo, justificada como um mecanismo funcional sob o enfoque econômico, do ponto de vista ético existem controvérsias. A partir de uma interpretação kantiana, a ética possui o dever igualitário e universal, independente da justificativa, quer seja situacional ou do conteúdo concreto. Para Kant, o comportamento moral é autônomo, assim como as pessoas – livres, ativas e criadoras – e as leis morais devem vir de dentro da consciência, e não de forma externa. As ações humanas são aquelas realizadas pelo dever, desconsiderando a recompensa ou o receio das consequências posteriores. Neste sentido, independente das influências externas, violar a dignidade humana, seja de si, seja do outrem, é como violar a moralidade, visto que, para o filósofo a norma deve ser válida para todos os seres humanos sem admitir exceções. Assim, a atividade escravista, do ponto de vista da ética kantiana pode ser considerada indecorosa.

Em contraponto, a teoria utilitarista enquanto princípio ético, fundada por Bentham (1979), e posteriormente difundida por Mill (2007),engendra que a utilidade está ligada a toda a ação que tem por objetivo final produzir ou proporcionar prazer, benefício, vantagem, bem ou felicidade, ou ainda, impedir algum dano, dor ou infelicidade (BENTHAM, 1979). O prazer e as dores constituem os instrumentos com os quais o legislador deve trabalhar. Para Bentham, chama-se ato útil, àquele vantajoso para o “maior número de pessoas”, incluindo o próprio indivíduo. Além disto, esta teoria avalia os efeitos e consequências da ação sob as seguintes circunstâncias para definir a melhor decisão: intensidade, duração, a certeza ou incerteza e a proximidade do tempo ou longinquidade.

Portanto, para a teoria utilitarista, o objetivo central do agir não é especificamente a intenção ou a ocasionalidade, e sim a consequência do ato e o valor que esta ação irá gerar. Logo, a escravatura enquanto um projeto desenvolvimentista, tanto em termos de infraestrutura, como atividade econômica mercadológica, poderia ser justificada, à medida que um grande número de pessoas estará se beneficiando desta prática. 
Por sorte, seu sucessor, John Stuart Mill, trouxe grandes contribuições ao utilitarismo de Bentham, a partir dos seus livros A Liberdade(1859) e Utilitarismo(1861), e de suas ideias baseadas no liberalismo econômico e igualdade humana. O autor acreditava que todas as grandes fontes de sofrimento humano são parcial ou inteiramente dominadas pelo cuidado e esforço humano, e presumia que todas as mentes suficientemente inteligentes e generosas iriam sobrepor qualquer egoísmo em prol do coletivo. Para Mill as principais causas de uma vida insatisfatória é o egoísmo, a falta de desenvolvimento intelectual e pobreza sob todas as suas formas (MILL, 2007). 
Mill (2007)chegou a confrontar a visão utilitarista quando a mesma supõe que as pessoas devessem fixar seus espíritos sob tão ampla generalidade do mundo e da sociedade como um todo. Afinal, a grande maioria das ações visam não o benefício dos outros, mas dos próprios indivíduos, os quais compõem o bem do mundo. Com os seus conceitos e a uma maior flexibilidade, o filósofo aprimorou a teoria utilitarista e agregou reflexões do ponto de vista da coletividade, das liberdades individuais e do desenvolvimento moral(1979). 
Deste modo, apesar do autor não abordar especificamente a temática escravista em minhas leituras
até este ponto, trago enquanto proposta, o uso da analogia com outras formas de escravidão da época, quando analisou a causa da aceitação da escravização do sexo feminino pelo sexo masculino. O filósofo atentava para o fato de que, apesar de o mundo ter avançado muito até aquele momento para a libertação de povos escravizados, as mulheres continuavam sendo subjugadas e oprimidas pelo sexo oposto, a saber, as mulheres continuavam sendo vistas como seres inferiores e sem autonomia, não só no âmbito público, mas também no âmbito privado (OLIVEIRA,2013). 
 
Assim como a escravidão, Mill questiona a utilidade da submissão feminina, ressaltando a ausência de fatores que comprovem tal comportamento, como citado na argumentação abaixo (MILL, 2006). 

“Se a autoridade dos homens sobre as mulheres, quando estabelecida, pela primeira vez tivesse sido o resultado de uma comparação conscienciosa entre as várias modalidades de se constituir a organização da sociedade; se, após se haver tentado várias outras modalidades de organização social – o domínio das mulheres sobre os homens, a igualdade entre os dois, e as modalidades mistas que porventura fossem inventadas – se houvesse decidido, com base no testemunho da experiência, que a modalidade na qual as mulheres estão totalmente sob o domínio dos homens, sem nenhuma participação nos assuntos públicos, (...), fosse a organização que melhor levasse à felicidade e ao bem-estar de ambos, então sua adoção universal poderia ser vista, justificadamente, como uma possível prova de que, na época em que foi adotada, era a melhor(...)”
Para Mill (2007), a igualdade econômica e política universal é um pressuposto importante para o desenvolvimento econômico e por isto, advogava a favor da liberdade para todos os seres.  
Em síntese, a escravidão sob a ótica categórica de Kant (2015) pode ser analisada como uma prática contrária a ética deontológica, uma vez que esta teoria não admite exceções em favor de alguém, algum coletivo social, classe ou condição. A ética de imperativo categórico é universal e de caráter obrigatório, são princípios morais inerentes a existência, e sobrepõe-se a quaisquer leis que venham de fora do indivíduo. 
Para os utilitaristas, apesar de que o indivíduo deve ser livre para direcionar sua vida como preferir, em tudo aquilo que não cause danos à terceiros (2007),a prática escravagista contraria essa premissa, onde os “fins justificariam os meios”, desde que as devidas circunstâncias às justifique (BENTHAM, 1979).  
Ainda assim, Mill enxergava três fontes de despotismo à sua volta: o Estado, o costume e a opinião pública. Graças a elas, os indivíduos passavam a vida numa existência atrofiada, sem experimentar seu verdadeiro potencial. Contra essa diluição dos indivíduos, Mill elaborou sua defesa da liberdade.  Suas obras convidam ao exercício de uma ética da liberdade e buscam a compreensão de hábitos e opiniões diferentes dos nossos. Trata-se de pilar fundamental em tempos de intolerância e fanatismo como os de hoje.


Referências
BENTHAM , J. Uma introdução aos princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1979
MILL, J. S. Utilitarismo. São Paulo: Editora Escala, 2007
KANT, E. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015
OLIVEIRA, M. A. S. Sujeição, costume e sentimento como manutenção da servidão feminina. Stuart Mill e a sujeição das mulheres. Revista Sapere Audi, v.4, n.7 , 2013
MILL, J. S. Sujeição das Mulheres. Revista Gênero. Niterói, v. 6, n. 2 - v. 7, n. 1, p. 181-202, 1. - 2. sem. 2006

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