Inteligência da Complexidade para evitar a “cegueira” do Conhecimento

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Patrícia Beckhäuser Sánchez

“Não se deve acreditar que a questão da complexidade só se coloque hoje em função dos novos progressos científicos. Deve-se buscar a complexidade lá onde ela parece em geral ausente, como por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN, 2003, p. 57). Talvez Nelson Rodrigues, um dramaturgo brasileiro do século XX, já estivesse bem-intencionado quando escrevia “A vida como ela é...”, uma série de contos que retratavam uma história da vida real, complexa por si só. Morin (2003) destaca que na vida cotidiana todos têm uma multiplicidade de papéis sociais, seja em casa, no trabalho, com amigos ou desconhecidos e que todo mundo se conhece muito pouco. O fato de que o próprio ser se transforma com o passar do tempo indica que não é simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do mundo humano.“Independentemente do que somos nos detalhes, nós, seres humanos, continuamos a ser componentes da natureza, um fragmento no grande afresco do cosmos, uma pequena peça entre tantas outras” (ROVELLI, 2018, p.115).

Para compreender o problema da complexidade, é preciso, primeiramente, saberque há um paradigma simplificador em que a simplicidade vê o uno ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser múltiplo ao mesmo tempo. Essa entropia que mede algo que diz respeito mais a nós do que ao cosmos lembra o personagem da mitologia grega Tirésias, presente no Édipo Rei, de Sófocles “Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem o possui". Inspirada em A ordem do tempo de Rovelli (2018), o argumento neste paper é: “Se nossas interações com o mundo são ‘cegas’ para muitas variáveis, então nossa visão de mundo é desfocada”.

Para Rovelli (2018) quando fazemos ciência, queremos descrever o mundo da maneira mais objetiva possível. E a complexidade para Morin (2003) encontra-se onde não se pode evitar contradições.Estaria sendo evidenciada a dialética objetividade/subjetividade? Complexidade implica um senso de solidariedade e um senso de caráter multidimensional de toda realidade. Mas será que é assim que enxergamos o mundo à nossa volta? A guerra das ciências, desvelada por Boaventura Sousa Santos e Latour, indicava uma segregação das ciências naturais e ciências sociais.Se a segregação está presente no cotidiano conseguimos ter uma visão multidimensional de toda realidade? Se considerarmos o econômico, é necessário ir além do utilitarismo de Bentham, Say e Stuart Mill para entender as necessidades e os desejos humanos e, nesse contexto, a psicologia pode desempenhar um importante papel.Se considerarmos a história, não é mais possível fazer compreender o presente com base no passado, é necessário falar do futuro no presente. Paradoxalmente, talvez os jovens estejam mais interessados na inteligência artificial do que no mito da caverna de Platão.

Três são os princípios, segundo Morin (2003), que podem nos ajudar a entender a complexidade: (1) dialógico traduzido em ordem e desordem, termos complementares e antagônicos; (2) recursão organizacional, ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos. Estaria Durkheim(2007) meio certo quando dizia que os estados da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados de consciência individual? Para Morin (2003) somos ao mesmo tempo produtos e produtores; (3) hologramático em que se pode enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas partes. O pensamento da complexidade tem necessidade da integração do observador e do conceptor em sua observação e em sua concepção. A possibilidade de ter meta pontos de vista.

Como as ilustrações, constantes no livro Zoomde Istvan Banya, tudo pode se tornar tão pequeno diante da imensidão do mundo e como nada é o que parece ser.

De acordo com Morin (2003) não se pode interpretar a realidade de modo unidimensional, embora o paradigma simplificador domine a nossa cultura hoje. Seria o resultado de paradigmas formulados anteriormente? Digamos que sim, mas há de se os considerar como produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico, civilizatório. “O paradigma complexo resultará do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão se acordar, se unir” (MORIN, 2003, p. 77) em substituição à visão simplificada linear que têm provocado estragos. Irá a complexidade resolver todos os problemas? Não é este seu intuito. Apenas nos tornar mais prudentes sem nos fechar no “contemporaneísmo”.

Para Kuhn (1987), não há um padrão de racionalidade universal para demonstrar a superioridade de um paradigma em relação a outro. Há incomensurabilidade entre sucessivos paradigmas. Quando houve alteração de um modelo por outro em que se defendia o geocentrismo,que afirmava que o sol girava em torno da terra, pelo heliocentrismo de Copérnico e Galileu, que afirmavam que a terra girava em torno do sol, houve uma mudança descontínua de paradigma. A terra que não era considerada um planeta, passou a ser.Pode-se também evidenciar alteração no modelo quando, em seus experimentos, Boyle acrescentou a temperatura, além do volume e pressão que já eram conhecidos.

Estes são momentos extraordinários da ciência caracterizados pela busca de um novo paradigma, revolucionando a ciência. A consciência de anomalias provoca crise que promove a busca por outros paradigmas. E para Feyerabend (1977) nesses momentos de crise a imaginação é mais importante do que o conhecimento.Para descobrir coisas novas é necessário novas formas. Não é possível chegar a novos conhecimentos pelos mesmos caminhos.

Em pleno século XXI, com transformações nos mais diversos campos como econômico, político, legal, social, cultural e tecnológico, não é mais possível resolver problemas da vida moderna tratando-os de forma separada. Precisamos ligar as partes para entender as emergências e assim evitar a “cegueira” do conhecimento.Será que é a terra que gira ao redor do sol ou somos nós que giramos? Depende da perspectiva. Precisamos nos reconectar!

Referências 

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FEYERABEND, P. Contra o Método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. 
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. 
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.                                        LE MOIGNE, J-L. Inteligência da Complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. N 4 out/dez, 2007.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003.
ROVELLI, C. A ordem do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
SOUSA SANTOS, B. Um Discurso sobre as Ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988. 

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