Positivismo no centro do diálogo: quando a coerção não acontece somente com a vítima

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Paulo Sérgio Cardoso da Silva


    O presente paper visa analisar uma relação profissional vivenciada por mim no setor público à luz da lente positivista de Durkheim e Comte. Trata-se de um caso verídico que aproveitei o exercício da disciplina para aplicar tais conceitos, a fim de encontrar possível coerência. (paper com tom de conto, e pessoalidade aumentada).

    Imagine você estar em um espaço profissional onde as possibilidades são múltiplas. É assim que me sentia na dita prefeitura em que desbravei conquistas memoráveis em tão pouco tempo. Não sabia eu que existiam regras. Regras para além do esperado. Para além do eticamente esperado. Embora fossem acontecimentos em que eu percebia intencionalidade “patológica”, aos primeiros olhos de Durkheim, cabe lembrar da primeira regra e mais fundamental: a de se considerar fatos sociais como coisas.

    Percebia no dia a dia, a naturalização de condutas que para mim eram obviamente equivocadas. Não falo da bajulação que o setor público tem como inerente, em termos gerais. Ademais, percebia que quem não dançava conforme a música, dançava. Conforme Durkheim coloca, um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos. Neste caso a sansão de não dançar conforme a música não estava determinada, mas a resistência foi sendo mostrada com o tempo...

    Percebia que minha rápida ascensão incomodava alguns, mesmo que eu sempre atribuísse créditos aos meus superiores – para fins de minimizar crises de ego e seguir a boa conduta. Três secretarias da mesma prefeitura me convidaram a migrar pelos meus destacados resultados – recusado de imediato pela alta gestão. Não conseguia compreender porque poderia estar sendo punido por mostrar resultados. Isto que eu nem tinha visto ainda as licitações furadas (eles não estavam acostumado com olhos treinados vindo de profissionais da saúde). 

    Aqui fica claro para mim o que Durkheim coloca como a percepção inicial que o indivíduo tem de o fato social ser inseparável do que se pronuncia ao mesmo. Era impossível para mim entender esta lógica. Se o fato social é algo que se dá no interior da sociedade, com uma certa generalidade e interesse social – eu não podia acreditar que isto tudo fosse um fato social. Seria tudo isto normal?

Fonte: https://davidarioch.wordpress.com/tag/imposicao/

    Fui colocado na geladeira, coagido, assediado. Chegaram a se passar por mim para outras pessoas (falsidade ideológica), tentaram cancelar uma homenagem na câmara de vereadores à minha pessoa, e até mesmo retiraram uma gratificação após um trabalho já realizado. Mas aí que vem o curioso. Se a coerção provinda dos fatos sociais ocorre àqueles que não dançam conforme a música, posso entender que as dezenas de profissionais que viram tudo o que aconteceu comigo e permaneceram calados para não perderem suas gratificações e outros “mimos” são parte dos coagidos neste processo. E hoje não fazendo parte deste ambiente, posso concluir que os mesmos permanecem sobre a coação dos fatos sociais. 

    Durkheim coloca que “é preciso descartar sistematicamente todas as pré-noções”, mas dada a situação por mim vivida, para mim cai por terra a necessidade de aceitar cegamente as condutas antiéticas e tóxicas – sobretudo pelo empirismo por mim construído, infelizmente, nesta jornada de aprendizados. 

    Entendo que a reflexão crítica sobre a ciência em si nunca vai ser absolvida da necessidade de um olhar mais profundo da sociedade, visto que ela não necessariamente sempre trará construções benéficas (a exemplo de armas biológicas, bombas nucleares). Neste meandro, ainda, Durkheim coloca que o crime está em todas as sociedades sendo até mesmo, algo necessário – pois sua natureza gera mudança na sociedade. Ademais, a partir de outros conceitos do autor, cabe se questionar até que ponto uma situação patológica é generalizável e passível de ser entendida como inteligência coletiva – sendo então um fato social?!

    Conforme o autor, o crime consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma clareza particulares. A pergunta que faço é: e se todo o ambiente estiver contaminado a um modus operandi patológico, serão naturalizáveis situações antiéticas neste contexto? Qual seria o nome desta situação? E quais os limites?

    Durkheim nos faz entender que a sociedade não é a soma das consciências individuais, mas uma consciência coletiva. Refletindo sobre isso, me assusta ter vivido o que vivi, não pelo que foi para mim, mas por entender que, analogicamente, situações como esta, “patologizadas” devem ser presentes em diversos locais. O que aos primeiros olhos pode ser a generalização de uma regra social, pode ser também um meandro de propagação de ilicitudes, o que fere o verdadeiro interesse social.

    Se a sociedade é um corpo, composto por órgãos e outras partes, o que devemos esperar das instituições sociais? Tal qual Comte coloca, a observação empírica fundamenta as teorias no estado positivo, e é neste sentido – de entender as leis que regem os microespaços de poder e sua coerência ética, que este paper-conto buscou explorar. 

    Ainda citando Comte, se o positivismo tem uma finalidade, é o de aplicar a ciência na organização social, a fim de levar a sociedade a maior coesão e vida pacífica. Pergunto-me se à luz do positivismo isto é possível, quando não se tem claramente definidos os fatos sociais e o estado patológico em determinado contexto.

    Em conclusão, vale registrar que embora verídicos os fatos aqui expressos, trago juntamente o viés da emoção. Retrocedo contudo, ao que citei de Durkheim lá no início: “considere os fatos sociais como coisas”. É preciso explicar os fenômenos sociais de forma separada, pesquisando cada causa eficiente e identificando se a função dos fatos tem uma finalidade efetivamente social – do contrário, é um estado patológico. Não serei o último a viver o que vivi, mas espero que o cidadão tenha o olho treinado para situações desvirtuadas e coragem para agir quando preciso for. 

Referências:

COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. p.1-57. 

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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