O Positivismo e o Mito da Neutralidade Científica

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Nicolas Rufino dos Santos

    Com as bases constituídas no século XVIII, o modelo de pensamento filosófico ocidental conhecido por “positivismo” teve sua consolidação na França no século XIX, por Augusto Comte, e influenciou uma boa parte dos países europeus, seja na filosofia, seja na arte, na literatura, e exerce seu domínio até hoje, principalmente na educação, mais especificamente nos campos da Psicologia e da Sociologia. Um dos objetivos dessa corrente de pensamento era o de traçar uma visão de mundo sobre a política, a ciência e a religião capazes de abrir um caminho para a constituição de instituições políticas que se alinhassem às indústrias das sociedades modernas, e um dos elementos principais dessa corrente era o universalismo, ou seja, o raciocínio de que haveria leis sociais universais capazes de administrarem toda a sociedade, tal qual as leis físicas que orientam todo o universo (SANTOS & SANTOS, 2012). O positivismo surgiu em um contexto histórico marcado pelo progresso das ciências naturais do século XIX e pelo raciocínio de que o método científico era o único capaz de resolver todos os problemas da humanidade, já que o modo de produção era notadamente industrial e manufatureiro. O progresso das ciências naturais influenciou fortemente o positivismo na busca da aplicabilidade de seus métodos no campo da filosofia (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1990; SILVINO, 2007).

Fonte: https://www.goodreads.com/book/show/59175619-a-general-view-of-positivism

    Foi considerável a influência da corrente filosófica positivista no Brasil. O positivismo nasceu no país na segunda metade do século XIX, e sua atuação envolveu a sociedade republicana a partir da defesa da abolição da escravatura, do liberalismo político, da escola tecnicista, além de abranger fortemente as instituições públicas através da defesa da ordem e do progresso da humanidade (SANTOS & SANTOS, 2021; PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). No entanto, é importante ressaltar que a forte influência do positivismo no Brasil não foi resultado da aprovação pela sociedade brasileira, mas pela adoção dessa corrente filosófica como visão de mundo por figuras como Júlio de Castilhos e Benjamin Constant Botelho de Magalhães (SANTOS & SANTOS, 2021).

    Uma das características marcantes da corrente positivista é o seu cientificismo, ou seja, o culto a uma ciência neutra, desprovida de elementos ideológicos. A filosofia preocupa-se em sistematizar as ciências e a metodologia, ignorando a metafísica como interpretação. Tanto Augusto Comte quanto Max Weber e outros intelectuais enxergavam a neutralidade como único caminho possível para chegar à verdade científica. Ambos replicaram no campo social o raciocínio de que o universo é regido por leis físicas naturais e invariáveis. Isso resultou em uma ciência social aparentemente isenta de elementos como posições políticas, classes sociais, ideologias e valores morais. Essa neutralidade realiza-se pelo não envolvimento do pesquisador com o seu objeto de pesquisa. Os resultados do estudo, portanto, só podem ser alcançados através da identificação de leis universais que controlam os fenômenos sociais. Nesse contexto, resta somente um caminho para o cientista social seguir: para alcançar a verdade objetiva, ele deve constituir-se como um sujeito neutro ideologicamente, desvincular-se de quaisquer ideologias e observar os fenômenos sociais como inalteráveis (CHAGAS, 2015). Um dos resultados mais marcantes da corrente positivista no campo da ciência é, portanto, o de conformação, o que deixa ao pesquisador tão somente o papel de ausentar-se da modificação das realidades sociais por considerar que a sua vontade é incapaz de alterá-la (DURKHEIM, 2007). 

    Outras correntes filosóficas, como o marxismo, defendem ideias contrárias ao positivismo. Uma delas é que a de que neutralidade científica é inatingível, uma vez que, por debruçar-se sobre fenômenos sociais, o cientista social é incapaz de abster-se de prénoções, de preconceitos e de conflitos ideológicos. Na verdade, a própria formação de um pesquisador é inseparável de uma trajetória que envolve variadas posições ético-políticas. Além disso, a própria corrente positivista foi constituída por intelectuais cujos pensamentos eram condicionados por pré-noções e ideologias, como os de classe, por exemplo (CHAGAS, 2015). Talvez esse seja a principal vulnerabilidade da corrente positivista: o fato dela não investigar “as causas primeiras e a essência metafísica dos fenômenos, mas procurar-se apenas fixar em leis sempre mais gerais, as relações constantes de sucessão ou de semelhança entre os próprios fenômenos, entre os fatos entendidos positivisticamente” (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1990, p. 432). 

    O paradigma positivista é uma corrente teórica que cientificizou o mundo, ou seja, condicionou as respostas sobre os fenômenos sociais somente ao saber científico. Ocorre que a neutralidade científica é um mito (COSTA & FRANCISCHETTO, 2018). A ciência é condicionada por escolhas delimitadas pelo pesquisador. Escolhas essas que são parciais, condicionadas, contextuais A ciência é um produto social e historicamente construído. Constantemente reflete sobre si mesma, mescla-se com fenômenos culturais, contextuais e valorativos (JAPIASSU, 1975) que estão em desenvolvimento, que são alvo de diversas mudanças históricas e que, portanto, anulam a neutralidade científica. A produção científica é consequência lógica e social do cientista. É produto da visão de mundo do sujeito, que é sempre condicionada, parcial e constitui-se, portanto, como parte formadora da atitude científica. 

Referências:

CHAGAS, Bárbara da Rocha Figueiredo. Positivismo e marxismo: o debate sobre a neutralidade científica e a construção do projeto profissional do Serviço Social brasileiro. Serviço Social em Revista, v. 17, n. 2, p. 169-186, 2015. 

COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. p.1-57. 

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 

JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. ed. Imago, 1975. 

SANTOS, Rosélia Maria de Souza; SANTOS, José Ozildo dos. O Positivismo e sua influência no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia e História, v. 1, n. 1, 2012. 

PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo. In: PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

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