O Wicked Problem “a desigualdade na oportunidade de aprendizagem” à luz do fato social de Émile Durkheim

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maryane Cristina de Souza 

Segundo Durkheim (2007), à medida em que o indivíduo vai se desenvolvendo, partindo dos primeiros momentos da sua existência, ele é introduzido a ensinamentos coercitivos, com o propósito de ensiná-lo a conviver na coletividade. A inserção dos ensinamentos coletivos é conduzida pelos pais: insistindo a dormir em horários certos, a comer, a ter calma, a beber e outras condutas. Mas após um certo período, esse indivíduo, por meio da coerção social, precisa ter acesso à educação formal. 

Um estudo realizado pela organização da sociedade civil Todos Pela Educação no ano de 2021, relatou a grande deficiência que está sendo enfrentada na educação, entre elas, desigualdades profundas, arraigadas e históricas, falta de infraestrutura, de investimentos e de prioridade na educação. A partir do objeto de estudo, a desigualdade na oportunidade de aprendizagem, será brevemente justificada a questão como um Wicked Problem. Após o esclarecimento do problema abordado, em segundo momento será levado a problemática para o entendimento da obra “As regras do método sociológico” de Émile Durkheim, especificamente o segundo capítulo sobre “Fatos Sociais”. 

O Wicked Problem pertence a uma categoria de problemas que não apresenta limites compreensíveis, onde não é possível definir suas delimitações, por decorrência, não há como estabelecer um escopo eficaz para a sua resposta (RITTEL; WEBBER, 1973). O processo de enfrentamento desses problemas está na reestruturação constante da própria questão discutida. O fato social é “toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda toda a maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independentemente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007). O objetivo da educação é produzir o ser social (DURKHEIM, 2007). 

A educação permite que o indivíduo se desenvolva e aprenda a viver em sociedade a partir da sua moral vigente. Partindo desse pressuposto, o argumento que será defendido no presente paper é: o problema da desigualdade na oportunidade de aprendizagem à luz do fato social de Émile Durkheim.
Fonte: Blog-superinteressante 

Com as escolas fechadas, tendo em vista a pandemia de corona vírus (COVID-19), veio a intensificar as diferenças de oportunidades, distanciar direitos e reacender problemas sociais que já estavam sendo combatidos no Brasil. Com base no Anuário Brasileiro de Educação Básica (2021), as disfunções estruturais, sendo o acesso ao ensino, a evasão de estudantes e a baixa qualidade do sistema, aumentaram em uma proporção ainda não mensurável. A desigualdade na oportunidade de aprendizagem é considerada um Wicked Problem pois, não há limites tangíveis, nem mesmo uma resposta concisa capaz de resolver o problema social, não é possível definir delimitações e não há um escopo eficaz que possa solucionar o problema. Essa desigualdade vai comumente se reestruturando, a pandemia é um exemplo, o Wicked Problem já não é mais o mesmo enfrentado antes do isolamento social, é preciso novas reformulações das políticas públicas voltadas a essa questão. 

Um estudo publicado pela Unicef (2021), prevê o risco do Brasil retroceder duas décadas na introdução de meninos e meninas à educação. Para a organização Todos Pela Educação (2021), a ineficiência do sistema educacional é causada pela progressiva descontinuidade de políticas, que oscilam a cada novo governo, a educação é um processo que requer tempo, análise e considerações, formação continuada, planejamento, organização, entre outros. Desenvolver uma política pública de sucesso para a gestão voltada à desigualdade na oportunidade de aprendizagem não é uma tarefa simples, porque a questão abordada não é apenas um Wicked Problem, mas é ainda mais complexo quando considera a questão política envolvida. 

Os Wicked Problems por se tratar de problemas sociais, nunca são resolvidos, na melhor das hipóteses são enfrentados repetidamente. Para esses problemas, a partir da sua definição é possível encontrar respostas para o enfrentamento. Os Wicked Problems possuem as 10 propriedades a seguir (RITTEL; WEBBER, 1973): 

1. Não existe formulação definitiva de Wicked Problem
2. Wicked Problems não têm regras de finalização. 
3. As soluções para Wicked Problems não são verdadeiras ou falsas. 
4. Não há teste imediato e definitivo de uma solução para um Wicked Problem
5. Cada solução para um Wicked Problem é uma "operação única". 
6. Wicked Problem não têm um conjunto enumerável de soluções potenciais. 
7. Cada Wicked Problem é essencialmente único. 
8. Cada Wicked Problem pode ser considerado um sintoma de outro problema. 
9. A discrepância que representa um Wicked Problem pode ser explicada de inúmeras maneiras. 
10. O planejador não tem o direito de estar errado. 

Os autores Head e Alford (2013) trazem algumas estratégias para lidar com os Wicked Problems: o foco na colaboração, para que seja possível trazer diferentes enfrentamentos e diferentes pontos de vista; formas mais amplas de pensar sobre as variáveis; mais opções e conexões; novos modelos de liderança, incluindo a liderança adaptativa e colaborativa; e por último, mudanças nas estruturas (que inclui mudanças na gestão pública) e processos de gestão. Para se estruturar um Wicked Problem é necessário assimilar que não há critérios para se compreender suficientemente um problema, o planejador sempre pode fazer melhor. Também não há como aprender por tentativa e erro, cada tentativa conta de forma significativa, o enfrentamento realizado pode deixar rastros que não poderão ser desfeitos. Não há critérios na qual comprove que todas as soluções foram identificadas, sempre pode haver algo diferente (RITTEL; WEBBER, 1973). 

A pesquisa da PNAD (2019) publicada pela Unicef (2021), relata que algumas crianças foram entrevistadas sobre o motivo de não frequentarem a escola, os maiores resultados foram o desinteresse em estudar, trabalho ou procura por trabalho e gravidez. Segundo a Unicef, o dado relacionado ao desinteresse em estudar não é uma análise simples ou fácil, é preciso compreender por meio de uma investigação mais aprofundada o motivo pelo qual levou a esses jovens perderem o interesse em estudar. Segundo o Instituto Rui Barbosa (2021), aproximadamente 10 milhões de estudantes frequentam escolas com algum problema grave voltado à estrutura, como a falta de água e a falta de acesso à internet. Apesar dos estudos informarem algumas questões que apresentam motivos que se relacionam com a desigualdade na oportunidade de aprendizagem, pode haver muitas outras questões atreladas a esse problema, não há um conjunto enumerável de soluções em potencial, justamente pelas causas desses problemas não serem únicas. 

Há uma alta ligação entre a pobreza e o afastamento de crianças e adolescentes da escola, na pesquisa feita pelo IBGE através do PNAD (2019), cerca de 90,1% dos que estavam fora da escola possuíam uma renda familiar per capita menor que um salário-mínimo. Os autores Rittel e Webber (1973) afirmam, através das propriedades dos Wicked Problem, que esse tipo de problema pode ser considerado o sintoma de outro problema, assim, é possível afirmar (por meio da pesquisa do PNAD de 2019) que a desigualdade na oportunidade de aprendizagem está vinculada à questão da pobreza. Anterior a pandemia, os desafios que envolviam a educação já eram tremendos. Mas, no momento atual, se intensificaram excepcionalmente. No ponto de vista de Durkheim (2007) a educação é um fato social, a criança passa por ações coercitivas que a impõe a estudar. No decorrer do livro, Durkheim expõe que uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberdade. Na contemporaneidade é possível considerar que tal argumento não corresponde às complexas dificuldades enfrentadas pela sociedade. 

A imagem abaixo ilustra a problemática da pobreza relacionada à problemática educacional, mostra também a desigualdade na oportunidade de aprendizagem como uma questão incluída na problemática educação. Todas as problemáticas são consideradas fatos sociais:
Fonte: Elaborado pela autora 

Na visão de Durkheim (2007), toda a educação consiste num esforço incessante com o objetivo de impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir, na qual ela não teria alcançado espontaneamente. Nesse sentido, apesar de Durkheim estar fazendo uma crítica a educação daquela época, o acesso à educação é de fato muito importante para a construção do ser no contexto coletivo. O fato social é toda maneira de fazer suscetível a exercer por meio do indivíduo uma coerção exterior, possuindo uma existência própria e sendo independente de suas manifestações individuais (DURKHEIM, 2007). Assim, os fatos sociais são exteriores, coercitivos e generalizados. 

Analisando a caracterização feita por Durkheim (2007) sobre fatos sociais, não há como deixar de reconhecer a natureza coercitiva do problema da desigualdade na oportunidade de aprendizagem. Além da coerção da própria educação, esse problema também tem a mesma natureza, pois a desigualdade na oportunidade de aprendizagem é um poder que se impõe a quem quer que seja. Mesmo em sociedades mais desenvolvidas, não há equivalência na aprendizagem, ela vai variar de acordo com as normas estabelecidas, a educação familiar e entre outros aspectos. Analisando em contexto mundial, a intensidade da coerção costuma ser menor em países mais desenvolvidos e maior em países menos desenvolvidos. Afinal, nos países em desenvolvimento a desigualdade é intensificada por outras adversidades, como a pobreza, por exemplo. 

Há também sociedades em que o conjunto de crenças e práticas transmitidas pelas gerações anteriores afeta a desigualdade na oportunidade de aprendizagem. Algumas regiões delimitam o acesso à educação a partir da segregação de gênero, impedindo mulheres de terem acesso à educação. A segunda caracterização definida por Durkheim (2007) é a exterioridade, o autor relata que os fenômenos sociais devem ser manuseados de forma desassociada dos sujeitos conscientes que os concebem, segundo o autor, é preciso estudá-los de fora, como coisas exteriores. 

Não é possível afirmar que a problemática abordada pode ser estudada separada do sujeito, o objeto poderá ser analisado com a máxima imparcialidade na investigação dos fatos, mas o julgamento em questão é a total imparcialidade. Conforme Pedro Demo, “todo cientista, ao fazer ciência, saberá que não faz a ciência, mas oferece apenas um enfoque, um ponto de vista, uma interpretação, já que ele próprio não passa de um cientista”, a demarcação científica mais importante é a discussão crítica (DEMO, 1995). Em relação a sua generalização, o problema da oportunidade de aprendizagem existe fora das consciências individuais, não é algo que pertence ao indivíduo, mas sim, é fruto da sociedade. Como relatado, está presente de forma difundida em diversos países e culturas.
Fonte: George Goodwin Killburne 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A pandemia de COVID-19 vai deixar um grande impacto no que diz respeito à educação de crianças e jovens com maior vulnerabilidade. Para que a situação seja combatida de forma positiva é preciso investir em políticas públicas, desenvolvendo práticas coletivas voltadas ao enfrentamento do problema. É preciso que os gestores caracterizem melhor a problemática, sempre buscando se atualizar em relação à sociedade. 

Segundo Durkheim (2007), “quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, solta aos olhos que toda a educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente”. Essa estratégia que acompanha o processo de socialização, por meio da atribuição de valores e sentimentos, correspondendo às necessidades coletivas, está ligada também ao que Head e Alford (2013) declararam como estratégia para lidar com os Wicked Problems. É a partir da coletividade que se lida com a desigualdade na oportunidade de aprendizagem e, também, é responsabilidade da educação “produzir o ser social”, gerando assim, um vínculo de dependência entre tais análises. 

REFERÊNCIAS

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007 
HEAD, Brian; ALFORD, John. Wicked Problems: Implications for Public Policy and Management. Administration & Society, 2013. 
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-do micilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e 
IRB, Instituto Rui Barbosa. Dados de Infraestrutura Escolar. Disponível em: https://projetoscte.irbcontas.org.b r/2021/06/21/quase-10-milhoes-de-estudantes-estao-matriculados-em-escolas-publicas-sem-condicoes-basicas-para-seguir-protocolos-durante-a-pandemia/ 
RITTEL, H. W. J.;WEBBER, M. M. Dilemmas in a general theory of planning. Policy Sciences, 155-169, 1973. 
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Anuário Brasileiro da Educação Básica. Disponível em: https://www.moderna .com.br/anuario-educacao-basica/2021/a-educacao-brasileira-em-2021.html UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. Relatório do Cenário da Exclusão Escolar no Brasil. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil. 2021

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