Da obra “Ceci n´est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) à angústia (e não o erro) de Descartes: crítica à crença de realidade objetiva de Bacon e ao racionalismo cartesiano

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Lilian Cristina Schulze

     A despeito do que inegavelmente se pode constatar que grandes pensadores como René Descartes e Francis Bacon tiveram contribuições à produção do conhecimento e da construção de metodologias de rigor científico, meu ponto de partida é a crítica de modelos ainda vigentes e que se baseiam na construção da noção de ciência apenas e exclusivamente no pensamento cartesiano ou na construção do conhecimento em busca de uma verdade ou realidade absoluta e objetiva. 
     Bacon (1979) entende que a realidade existe por ela mesma e o papel da ciência é reproduzi-la e experimentá-la, através do método indutivo e baseado na observação criteriosa da natureza, na organização disciplinada e objetiva de forma a evitar as distrações dos sentidos e emoções (subjetividade), hipóteses a serem testadas como verdadeiras ou falsas e comprovação através da experimentação, pois todo o resto seria apenas fruto de interpretações equivocadas, descoladas da realidade per si. Como seria possível, nos dias de hoje, conceber a realidade e retrata-la fielmente, sem que sejam suposições e apropriações subjetivas? A realidade objetiva é possível?
Haveria, de fato, algum método capaz de sintetizá-la ou seria mais um método cuja significação e interpretação são dadas por cada pesquisador?
    Já Descartes (1979), através de seu conhecido modelo de pensamento linear, da linha do raciocínio que deve ir do simples ao complexo e do particular ao geral, bem como de sua defesa à compartimentalização do conhecimento e a dicotomia clássica (corpo e mente; razão e emoção; objetividade e subjetividade, por exemplo) advindas de lógica positivista, um grande erro para Damasio (1995), encontra ainda muitos adeptos. A complexidade e multiplicidade de fatores que interferem na compreensão de mundo seria, dessa forma, angustiante por não ser previsível, controlável, linear e objetivável, sendo necessária, ao menos, a objetivação (Demo, 1985). Seria o racionalismo um método com vistas a aplacar a angústia constitutiva do ser humano de “não controlar o que é desconhecido”? 
     A arte pode expressar essa angústia através da análise da polêmica obra de Magritte que, criticada por Foucault (1988), representa um objeto que nunca será por si mesmo o objeto ou a realidade objetivada. O desenho de um cachimbo nunca será o cachimbo, mas apenas sua reprodução simbólica e subjetiva daquele que o reconhece. Foucault (p.19) compara o desenho do cachimbo a um manual de botânica: uma figura e um texto que o interpreta. Assim poderíamos traçar um paralelo entre a crença da realidade objetiva da natureza de Bacon e a obra de Magritte como a representação da realidade como mera interpretação, não importa quão “realista” ela seja. A obra de Magritte, pertence ao movimento do surrealismo e critica veemente o racionalismo e pode ser perfeitamente transponível ao debate em torno da reprodução da realidade objetiva a despeito da subjetividade. Por mais que se utilize de métodos rigorosos, o cientista só terá acesso a uma representação, pois ela própria é fruto de sua subjetividade. Assim, a obra de Magritte “a traição das imagens”, conhecida por: “ceci n`est pas une pipe”, tem na representação da imagem tal qual da natureza pela ciência. Isso não é a realidade, mas tão somente sua representação.

     Seria possível, então, pensar na ciência pós-moderna enquanto método que reproduza fielmente a realidade? O conhecimento não é histórico e, portanto, passível de interpretações de quem o percebe e quando o faz? A produção do conhecimento enquanto forma de apropriação é compartimentalizável ou o fazemos por nossa própria incompetência e limitação humana, pautada numa “angústia pela racionalidade”?


Referências
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. 
DAMÁSIO, António R., O Erro de Descartes. Emoção, Razão e Cérebro Humano, 12ª edição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1995, (col. Forum da ciência, 29).
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. 5ª ed. tradução de Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Disponível em: https://monoskop.org/images/4/46/Foucault_Michel_Isto_nao_e_um_cachimbo.pdf Acesso em 14 ago. de 2018.

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