A crise da ciência e a hipótese da quarta ferida narcísica da humanidade

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Lilian Cristina Schulze

     Pensar que a ciência hegemônica jamais existira pode parecer, de certa forma, até óbvio. Entretanto, que seja possível tantas ciências quantos são os cientistas, ainda nos deixa perplexos ou incrédulos. Ou acreditar que ao menos não haja apenas dois polos científicos, antagônicos e conflitantes, cenário da guerra das ciências (Santos, 1988) já é motivo de desconforto. Mas este mundo bipolarizado, queria eu crer, é coisa do passado. Já não podemos voltar atrás como num pensamento “moderno”, segundo Latour (1994) onde há a “flecha irreversível do tempo”, porém o autor questiona mesmo: “e se sequer estivéssemos nesse passado”? Se a flecha não teria chegado, que dirá passado pela modernidade. 
     Falando em tempo, não é de hoje que a comunidade científica e, assim a sociedade, se depara com angústias epistemológicas e necessárias desconstruções de verdades até então inquestionáveis. As feridas narcísicas referem-se ao que Freud em um texto de 1917 (FREUD, 2006) cunhou como duros golpes ao narcisismo da humanidade, configurando-se em dolorosos questionamentos a nossa própria constituição humana: a primeira ferida exposta contesta um lugar privilegiado e autocentrado do homem no universo: a teoria heliocêntrica, cujos algozes seriam identificados por Copérnico e Galileu, expondo a participação ínfima do homem num universo imensurável. Já não ser “o centro do universo” fez dos homens daquela época, incrédulos e desconcertados, sentirem uma dor profunda e a se recolherem em sua própria insignificância, a primeira delas segundo Freud. A segunda ferida refere-se à vergonhosa constatação de nossa herança genética mais ligada a macacos que a deuses. Darwin com a teoria evolucionista nos expõe a uma ascendência animal, primitiva e um verdadeiro golpe ao nosso amor-próprio e à crença de superioridade da espécie humana. Já na terceira ferida o próprio Freud foi o revelador antipático, com a teoria psicanalista, que de uma forma nada simplista afirma que não somos tão donos assim de nosso destino e de nossas escolhas como acreditávamos e que, por meio de grande parte de material inconsciente e inacessível, somos escravos de desejos e pulsões mais obscuros, necessitando de autoconhecimento pra acessar apenas partes deste verdadeiro e inatingível “eu”. Freud põe por terra a teoria do livre arbítrio. Todas estas feridas provenientes dos “achados científicos” e do progresso da ciência.   Como no mito de Narciso, a cada constatação de ser apenas a miragem de uma suposta perfeição humana, nos afogamos. 

Narciso, pintura em óleo de Caravaggio. Cerca de 1597-1599.
     E a humanidade continua a ser assombrada. São vários os golpes à autoestima e euforia humanas, mas identifico na leitura dos textos de Latour (1994) e de Boaventura Souza Santos (1988) o que poderia ser um claro e quarto episódio de ferimento narcísico: a guerra das ciências e a constatação de que o mundo (ao menos o científico) já não pode ser considerado bipolar e, portanto, “moderno”. Em buscas na web a fim de creditar outros autores e a pesquisar se mais alguém havia já, de forma não inédita como tive a ousadia em pensar em ser original, propôs quartas ou quintas feridas narcísicas com base no texto de Freud. Eis que Carvalho e Sousa (2012) associam a quarta ferida à crise da ciência apontada por Santos (1988). Identifico, ainda, a crítica à bipolaridade das ciências sociais e as ciências naturais como que em polos opostos e a crença ingênua da ciência que, por muito tempo e considerando-se numa época “moderna”, seria possível dividir um mundo de possibilidades complexas em apenas duas ciências-matrizes. Realmente é de se espantar que se tenha acredito por tanto tempo em algo tão improvável. 
     O recalque dos modernos, citado por Latour (1994, p.68) está aqui escancarado para trazer à tona o sofrimento humano a partir de uma falha de mecanismos de defesa frágeis. De um lado Santos (1988) apontando a ruptura e fragmentação epistemológica e de outro Latour com o próprio questionamento desta ruptura e, assim, do conceito de modernidade, inaugurando o paradigma da pós-modernidade. Se de um lado não é mais possível pensar em polos de conhecimento únicos, causando a abertura de uma ferida narcísica baseada mais uma vez na prepotência humana e, especificamente científica, de que não “deveríamos” dividir o conhecimento, resta um alento: ao ler Latour penso que a humanidade tem a oportunidade de resignificar a clássica e importuna necessidade de dividir, classificar e dissecar em partes minúsculas os objetos-sujeitos de seus estudos. Porque não integrá-los, mediá-los em uma escala? Narcíso toleraria abrir mão do controle absoluto? Pois enquanto não tolerar, viverá ferido, talvez até as feridas virem escaras profundas


Referências
CARVALHO, C.A. SOUSA, M.T. A quarta ferida narcísica: a crise da ciência moderna e suas implicações para as pesquisas em comunicação. Revista Comunicação Midiática, v.7, n.3, p.109-128, set./dez. 2012 110. Disponível em: https://dadospdf.com/download/a-quarta-ferida-narcisica-a-crise-da-ciencia-moderna-e-suas-implicaoes-para-as-pesquisas-em-comunicaao-_5a4c1ac5b7d7bcab67045759_pdf 
Acessado em 04/09/2018. 
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LATOUR, B. Jamais  fomos  modernos.  Rio  de  Janeiro:  Editora  34,  1994.
SANTOS, B. S. Um Discurso sobre as Ciências.  Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.

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