Science Studies e a pesquisa em Administração

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Larice Steffen Peters.

A academia está preparada para encarar à ciência através dos Science Studies? O estudo da ciência – do que pode ou não ser chamado como tal – e da demarcação científica ao longo da história se mostrou como uma arena de disputas, disputas que foram importantes e que estavam ancoradas em determinado contexto temporal e histórico. Viuse o protagonismo de determinadas áreas do conhecimento, o papel nobre do cientista e uma busca – quase incansável – de tentar provar que a ciência é neutra. Só que, com os autores de Science Studies, parece-nos haver uma virada na compreensão do que é a construção científica, sai de cena uma discussão epistemológica para dar espaço para o campo de prática científica na qual o cerne está na aproximação de onde a ciência se realiza.

Bourdie (2013) reforça, sabiamente, que falar de ciência é falar de poder. Essa tentativa de dominar o poder pode ser visualizada no aumento das revistas e editoras predatórias, as quais priorizam seus próprios interesses em detrimento do que – ao longo dos anos – foi sendo caracterizado como conhecimento e ciência (BU UDESC, 2023). Tais publicações são caracterizadas por disseminar informações falsas, por cobrarem elevados valores dos autores para garantir a publicação e, dentre tantos outros problemas éticos, não agirem com transparência. Mas, por mais que a academia – pelo menos no âmbito da Universidade do Estado de Santa Catarina – alerte para tais fatores, elas seguem ganhando espaço e se pulverizando. Qual será o motivo? Talvez, as regras do jogo impostas pela própria academia e pela busca exacerbada por volume de publicações.

Nesse campo de disputa de poder, outro fator que nos leva a questionar se a academia está preparada para os Science Studies é a predominância de uma visão eurocentrista e americana na análise da relevância das publicações (e no definir o que é ou não científico), além, da priorização – em muitas situações – de trabalhos com características apenas quantitativas e da exigência das publicações em língua inglesa. Reflexões que seguem nesse caminho foram objeto de discussões em uma live realizada pela Anpad em 2021 e, há um entendimento que existem regras do jogo já impostas para garantir determinadas publicações e alimentar a academia (Anpad, 2021).

Ilustrados, de forma bastante breve, alguns pontos que desenham o cenário no qual a academia está inserida se faz o contraponto com os Science Studies – a prática científica. Merton (2013) afirma que existem consequências sociais dos trabalhos dos cientistas e defende que o éthos na ciência passa pela compreensão do universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo. No universalismo, a ideia principal é de que as normas e critérios para avaliar a qualidade do conhecimento científico devem ser aplicados de maneira universal, ou seja, não devem ser influenciados por fatores pessoais ou contextuais. Nesse sentido a reflexão que surge é: se há o predomínio da visão eurocentrista e americana em dizer o que é não ciência, qual o espaço para as publicações que retratam a realidade do Sul Global?

No comunismo, Merton (2013) defende que o conhecimento científico deve ser compartilhado abertamente entre os membros da comunidade científica, o que implica em compartilhamento de dados, métodos e descobertas visando o benefício coletivo. Em contraponto a tal concepção a prática na academia é marcada por revistas que requerem altos valores financeiros para serem acessadas, além da natureza privada e restrita de inúmeras bases de dados.

Ao falar sobre desinteresse, o referido autor apresenta que a principal motivação do cientista deve ser a busca pelo conhecimento e não interesses ou ganhos pessoais, ou em outras palavras: que os ganhos coletivos devem ser superiores aos ganhos pessoais (Merton, 2013). Sobre esse ponto, podemos nos deparar com tantas camadas que chega a ser difícil colocá-las no papel: interesses privados – de grandes grupos econômicos e políticos - no desenvolvimento de pesquisas, cientistas que se submetem a divulgação de pseudociência, etc.

Por fim, ceticismo organizado, no qual está em voga a atitude crítica e questionadora em relação às teorias existentes (Merton, 2013). Nesse ponto, acreditamos que é mais fácil de encontrar um alinhamento com o que está em prática na academia. 

Considerando outro autor dos Science Studies, gostaríamos de falar de Bloor (2009) que afirma que a ciência não está além da sociedade e daqueles que a estudam. Para além dessa afirmativa, apresenta-se o item reflexividade defendido pelo autor ao discorrer sobre o Programa Forte: reflexividade está ligada à ideia de que a sociologia da ciência não está isenta de suas próprias influências sociais e culturais, o cientista – no caso, o sociológo – deve ser reflexivos em seu próprio papel na construção do conhecimento e de como suas próprias perspectivas sociais podem influenciar suas análises. Há de se considerar, para Bloor (2009), que a posição social do cientista e suas influências estão também interligadas à prática científica social. Da reflexividade, o ponto de comparação com a academia é em relação a neutralidade do cientista – algo que me nossa visão, por mais que seja uma constante busca, não existe. 

Aproveitando a reflexividade trazida por Bloor, há também que se retomar que Bordieu (2013) possui uma visão do campo científico como um campo de lutas e aqui, entra em cena o papel do pesquisador em Administração e a postura que dele se espera – ou deveria se esperar – se ele compreender que está inserido em um campo de prática científica e tiver uma postura que vá ao encontro dos Science Studies.

Sabe-se que existem desafios já impostos na academia, mas sabe-se que com determinadas ações é possível traçar e reforçar novos caminhos. Considerando que a prática científica requer os pontos defendidos por Merton (2013), que há a reflexividade (Bloor, 2009), que o campo científico é um espaço de lutas (Bordie, 2013) e que o pesquisador é um agente – não neutro – dentro desse espaço destacamos a necessidade de se considerar o impactosocioambiental nas pesquisas em administração.

Alpersted e Andion (2017) chamam atenção para a necessidade do impacto social da pesquisa científica, sendo essa uma temática que deve ultrapassar os muros do Brasil e, que vai além da academia posto que é sentida e vivida na e pela sociedade. A ciência social é um saber – na palavra das autoras – situado, ou seja, ele está imbricado no enfrentamento das situações problemáticas da vida em sociedade. Para além disso, elas ainda apontam que a natureza da administração é uma natureza de ciência das práticas e não deve se afastar da realidade, muito pelo contrário, é na realidade que o pesquisador de administração deve atuar de modo que possa ser transformado e transformá-la. 

Seguindo a mesma linha, Ventura e Davel (2021) afirmam que a preocupação com o impacto socioambiental deveria ser fator onipresente em todas as pesquisas e práticas científicas. A postura dos autores está pautada na problemática que questões socioambientais negligenciadas reforçam as desigualdades sociais porque seus primeiros impactos – sempre – são sentidos primeiro pelos segmentos mais vulneráveis da sociedade. 

Por fim, como pesquisadores e cientistas da área de Administração, sabemos que devemos ter como éthos uma pesquisa que seja capaz de transformar as realidades sociais.

REFERÊNCIAS

ALPERSTEDT., G.D.; ANDION, C. Por uma pesquisa que faça sentido. Perspectivas. São Paulo, RAE/FGV-EAESP, V.57, n.6, nov-dez 2017, p. 626-631. 

ANPAD. Live Anpad: [ODPs] Pesquisa Qualitativa em Administração: Unindo Rigor e Relevância. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fZntfgKsvz4. Acesso em outrubro, 2023.

BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Introdução. 

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013. 

BU UDESC. Folder Revistas Predatórias. não caia nessa. Material informativo compartilhado por e-mail institucional. Outubro, 2023

MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013. 

VENTURA, A.; DAVEL E. Impacto socioambiental da pesquisa (Editorial O&S), 2021. 

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