A Participação das Mulheres na Ciência Sob a Abordagem de Pierre Bourdieu

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ligia de Godoy

A inserção das mulheres no campo científico se deu, ao longo do tempo, em um cenário de lutas constantes. Da proibição em produzir ou aplicar conhecimento científico, que as desprezava e até perseguia, aos obstáculos ainda hoje encontrados, sabe-se que é um campo de desafios. Esses desafios podem ser relacionados a uma ordem científica estabelecida e suas estratégias para manter a autoridade dos dominantes e a estrutura já consolidada. Por se tratar de um campo historicamente masculino e segregador, as mulheres tiveram, e ainda têm, dificuldades em adentrá-lo, sofrendo, também, com um atraso considerável. As origens desses desafios encontram correspondência nas concepções de Pierre Bourdieu sobre o campo científico, suas lutas, interesses e estratégias. O presente ensaio busca, portanto, refletir a respeito da presença das mulheres na ciência, a partir dos conceitos de Pierre Bourdieu (2013) sobre o campo científico e suas variáveis.

Bolzani (2013) traz a imagem simbólica da quinta edição da Conferência de Solvay (Figura 1), ocorrida na Bélgica, em 1927, na qual aparecem os 29 participantes, principais representantes daquele momento tão significativo da ciência. Estavam entre eles dezessete ganhadores do Prêmio Nobel, inclusive Albert Einstein e Niels Bohr, além da única mulher a aparecer na representativa imagem, Marie Curie. Marie Sklodowska Curie foi uma física e química polonesa, naturalizada francesa, cuja história inspirou e inspira mulheres a trilhar o rumo da ciência. Ganhadora duas vezes do Prêmio Nobel, Curie foi a primeira mulher agraciada com o prêmio, e a única pessoa até hoje a recebê-lo por descobertas em duas áreas científicas distintas, física e química (BOLZANI, 2013). Ainda que seja reconhecida a importância de Marie Curie na ciência, não se pode ignorar a pequena expressão das mulheres no campo científico, visto que se encontrava sozinha em meio aos homens, naquele momento tão significativo que foi a revolução científica do início do século XX. Bolzani (2013) destaca, ainda, que, nos 90 anos seguintes à conferência mencionada, apenas 16 dos 320 prêmios Nobel, das áreas de física, química e medicina, foram concedidos a mulheres.

Figura 1 - Registro dos participantes da quinta edição da Conferência de Solvay

Fonte: BOLZANI, 2013, p. 57.

O campo, como tratado por Bourdieu (2013), pode ser entendido como um locus – espaço – onde ocorrem lutas concorrenciais entre os atores, estimuladas por interesses específicos típicos da área em questão. O campo é, assim, um locus caracterizado pelo consenso. No caso do campo científico, os interesses giram em torno dos monopólios da autoridade e da competência científica. Reforça-se, então, a presença de uma forma específica de interesse, que se volta tanto ao trabalho, como ao que dele irá retornar ao pesquisador – a autoridade científica, usualmente na forma de reconhecimento. O que está em jogo nessa luta é o poder de impor uma definição de ciência, dos seus problemas, métodos e teorias, visando ocupar uma posição dominante no campo científico. A autoridade científica é tida por Bourdieu (2013) como uma espécie de capital social, que confere poder sobre os mecanismos constitutivos do campo, podendo, ainda, ser reconvertida em outras espécies de capital ou reinvestida. Quanto maior a autonomia do campo, mais os produtores tendem a ter como clientes os seus próprios concorrentes, dos quais irão esperar o reconhecimento tão almejado. O reconhecimento é, como trazido por Bloor (2009), o direito à propriedade do cientista. O autor relaciona o reconhecimento ao princípio que chama de “comunismo”, segundo o qual as descobertas da ciência decorrem da colaboração social orientada para a comunidade. Bloor (2009), a exemplo de Bourdieu (2013), reforça a importância de se reconhecer a herança cultural e a natureza cooperativa e acumulativa da ciência.

A participação das mulheres na ciência, desde os séculos XVI e XVII, deu-se de uma forma camuflada, escondida, já que o conhecimento que produziam não era considerado científico pela ordem social vigente (CARVALHO; CASAGRANDE, 2011). A partir do século XIII, as mulheres passam a ser proibidas de praticar a medicina, não podendo também frequentar escolas, universidades ou bibliotecas. Tomando como exemplo a situação brasileira, a primeira grande lei educacional, de 1827, permitiu que as mulheres frequentassem escolas elementares, porém com programas diferentes entre meninas e meninos. As meninas aprendiam tarefas domésticas, como costura e bordado, enquanto recebiam lições limitadas de matemática, por exemplo. Considerava-se que não tinham um raciocínio tão desenvolvido, e deveriam aprender tarefas que facilitassem o cuidado doméstico, para que os maridos não precisassem se preocupar com isso (SENADO, 2020). Foi apenas em 1879 que as mulheres brasileiras tiveram autorização do governo para frequentar instituições de ensino superior, de forma ainda pouco expressiva e criticada pela sociedade. No resto do mundo, a situação não era diferente. O acesso das mulheres aos estudos universitários se dá de forma mais significativa apenas a partir do século XIX, e ainda mediante barreiras e preconceitos. O desenvolvimento tardio das mulheres na ciência interfere na acumulação do seu capital científico (BOURDIEU, 2013). Ainda, o capital científico acumulado pelas lutas anteriores nesse campo é predominantemente produzido por homens, o que poderá influenciar a distribuição desse capital atualmente, o qual viabiliza – ou não – as estratégias e as chances das pesquisadoras. Tem-se, portanto, de forma cíclica, como é a própria acumulação de capital científico, uma relação entre o capital acumulado, os recursos disponíveis, o lucro/reconhecimento (também em forma de títulos e carreira) e um reinvestimento, que irá possibilitar novamente o processo de produção do conhecimento. 

A luta científico-política por legitimidade está sujeita à estrutura do campo, que se situa entre dois polos, jamais alcançados plenamente: um monopólio e uma concorrência perfeita, com igual distribuição de capital. Em toda estrutura estão os dominantes e os dominados, cujo capital é proporcional à importância dos recursos científicos acumulados no campo. Têm-se, portanto, estratégias opostas entre os dominados/aspirantes e os dominantes. As estratégias estão sujeitas à sua posição no campo e ao capital científico de que dispõem. Os dominantes aderem às estratégias de conservação, buscando manter a ordem científica estabelecida que os consagrou a dominantes. A estrutura do campo científico é dependente, então, das relações de força entre seus membros, sejam eles agentes ou instituições, em luta concorrencial constante. As condições dessas relações de força derivam, ainda, do capital científico acumulado em lutas anteriores. Essa ordem compreende o que Bourdieu (2013) chama de “ciência oficial”, que seria composta pelo conjunto de recursos científicos herdados, em estado objetivado (instrumento, obras e instituições) e incorporado (hábitos e esquemas de percepção, apreciação e ação) e pelas instituições encarregadas da produção e circulação dos bens científicos e da reprodução dos produtores. No campo científico, considerando a proibição de mulheres na ciência por muitos anos, pode-se associar os cientistas homens a um papel dominante, aderindo a uma estratégia de conservação, de modo a manter a ordem científica estabelecida. Essa ordem tem a tendência de se perpetrar entre seus similares, contando, ainda, com um conjunto de recursos científicos herdados robusto e singular. 

Mesmo em meio a tantos obstáculos, as mulheres produziram conhecimento científico ao longo dos séculos, sendo esse conhecimento incorporado em diversas áreas. Isso era feito, porém, de forma improvisada, dentro de suas casas ou escondidas, e divulgando suas descobertas com o nome de seus familiares ou maridos homens, enquanto não lhes era permitido fazer ciência, por serem mulheres (BOLZANI, 2013). É notável, então, a limitação do direito de entrada das mulheres, esse tipo de censura que Bourdieu (2013) coloca, e que se torna mais difícil à medida que se acumulam os recursos científicos. Condições de acesso ao campo científico, como o sistema de ensino, aumentam recursos acumulados e, com eles, capital necessário para sua apropriação. Essa acumulação demanda, então, um maior capital incorporado do pesquisador para ter acesso aos recursos científicos, materializados na forma de problemas e instrumentos. A entrada tardia das mulheres no campo científico, que conta com um capital já acumulado por homens, faz com que elas acessem esse campo já em desvantagem. Ainda, a prática científica de forma camuflada, compulsoriamente anônima, tirou dessas mulheres o direito à visibilidade, que está atrelado à busca pelo reconhecimento.

Carvalho e Casagrande (2011) reforçam a importância de destacar as conquistas das mulheres no campo científico, ao longo dos anos, a despeito dos desafios e obstáculos enfrentados. O acesso às universidades está, hoje, aberto às mulheres, e essas já são maioria em determinados países e instituições. Há de se considerar, porém, as diferenças em relação à participação de homens e mulheres, em função das áreas de conhecimento. É comum que as mulheres sejam maioria nas ciências da saúde, educação e humanas, enquanto sua participação cai expressivamente nas ciências exatas, como nas áreas de tecnologia e engenharias. Silva e Ribeiro (2014) afirmam que, mesmo que se tenha uma maior participação das mulheres atualmente no espaço científico, é preciso verificar também as posições dessas na hierarquia acadêmica. As autoras mencionam, com base em dados de 2010, que o número de mulheres diminui à medida que a hierarquia aumenta, sendo as posições mais altas usualmente ocupadas por homens. Segundo essas autoras, ainda, é preciso considerar as barreiras de acesso a esses níveis mais altos, decorrentes da estrutura ainda patriarcal da sociedade, que designa às mulheres uma série de tarefas e obrigações a mais. Silva e Ribeiro (2014) buscaram, então, compreender as trajetórias acadêmicas e profissionais de mulheres cientistas de diferentes áreas, a partir de entrevistas. Aparecem nas entrevistas questões sobre preconceito e atribuição de papeis e padrões provenientes do gênero, além daquelas relacionadas às diferentes identidades que a mulher exerce, dividindo-se entre o papel de cientista/profissional e o de mãe/mulher/esposa. A necessidade de adesão ao que as autoras chamam de “modelo masculino de ciência” pode levar as mulheres a um sentimento de culpa ou remorso, pela atenção despendida ao trabalho acadêmico, em detrimento do cuidado dos filhos, levantando discussões também acerca do adiamento da escolha de ser mãe. 

É notável a evolução da presença feminina no campo científico, após séculos de lutas e desafios. Hoje as mulheres ocupam, quantitativamente, posições similares ou até superiores às dos homens nas universidades. Porém, é possível perceber, ainda, desigualdades e barreiras, especialmente em posições superiores hierarquicamente, e em áreas específicas, como as ciências exatas. O ingresso tardio das cientistas mulheres e a desigualdade histórica de oportunidades prejudicou o seu acúmulo de capital científico e, por sua vez, o acesso aos recursos científicos de que necessitam para obter o reconhecimento almejado no campo. Dificultou, e ainda pode dificultar, também, o seu direito de entrada, pelo qual se identifica uma ordem científica estabelecida com base na prevalência masculina nesse campo. É necessário, então, reconhecer os mecanismos sociais que asseguram a manutenção dessa ordem, e os interesses por trás deles, buscando, caminhar, cada vez mais, para uma participação mais equilibrada entre homens e mulheres na ciência, sobretudo nas posições dominantes.

REFERÊNCIAS
 
BLOOR, David. Conhecimento e imaginário. São Paulo: Editora Unesp, 2009. 
BOLZANI, Vanderlan da Silva. Mulheres na ciência: por que ainda somos tão poucas? Cienc. Cult. [online], v. 69, n. 4, p. 56–59, 2013. 
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013. 
CARVALHO, Marilia Gomes de; CASAGRANDE, Lindamir Salete. Mulheres e ciência: desafios e conquistas. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, v. 8, n. 2, p. 20–35, 2011. 
SENADO, Agência. Para lei escolar do Império, meninas tinham menos capacidade intelectual que meninos. 2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/nas-escolas-do-imperio-menino-estudava-geometria-e-menina-aprendia-corte-e-costura>. Acesso em: 1 nov. 2021. 
SILVA, Fabiane Ferreira da; RIBEIRO, Paula Regina Costa. Trajetórias de mulheres na ciência: “ser cientista” e “ser mulher”. Ciênc. Educ, v. 20, n. 2, p. 449–466, 2014. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário