Uma outra vida: a (re)conexão a uma ordem original

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Amanda Marina Lima Batista.

Qual é a vida que conhecemos? Quais as vidas que reconhecemos? Como percebemos a Vida com nossas consciências? Ailton Krenak (2020) sugere que “pensemos na vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”, “água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição”. A ideia de conhecimento imanente, da Fenomenologia, conflui com o pensamento de Krenak e talvez seja uma parte do caminho para experimentar outra(s) vida(s).

Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859-1938) foi um filósofo alemão criador da Fenomenologia, que consiste no estudo dos fenômenos, ou seja, daquilo que aparece à consciência. O objetivo é explorar os fenômenos de forma direta, sem a intermediação de explicações científicas ou análises complexas prévias. Em sua abordagem, Husserl identifica dois tipos fundamentais de pensamento: o imanente e o transcendente.

Fonte: https://descomplica.com.br/blog/epistemologia-entenda-o-que-e-esse-campo-de-estudo-da-filosofia/

Segundo o teórico, “o conhecimento intuitivo da cogitatio é imanente, o conhecimento das ciências objectivas – ciências da natureza e ciências do espírito – mas também, vendo de perto, o das ciências matemáticas é transcendente” (Husserl, 2008, p. 22). A Fenomenologia tem como objeto o conhecimento imanente, ou seja, a descrição da estrutura específica do fenômeno (fluxo imanente de vivências que constitui a consciência) e, como estrutura da consciência enquanto consciência, ou seja, como condição de possibilidade do conhecimento. 

De acordo com Schutz (1979), o primeiro fato indubitável de que Husserl parte é a existência de uma consciência em cada pessoa, em cada ser que afirma “eu penso” e “eu sinto” que participa da realidade coletiva. A vida pessoal da consciência é contínua e mutável, “comparável a um rio ou corrente” (Schutz, 1979, p. 57).

Parafraseando Schutz, é possível perceber que a vida pessoal da consciência é reconhecida pelas pessoas em geral nas noções de que o próprio pensar é sentido e que o estado mental de cada um é uma atividade interior diferente dos objetos com os quais cada pessoa interage. Nesse sentido, com a finalidade de acessar o conhecimento imanente a respeito do tema estudado, a ciência fenomenológica examina a forma como os sujeitos experimentam os eventos vivenciados.

Para que essa investigação ocorra de forma genuína, é necessário que o pesquisador assuma uma postura de redução fenomenológica, com a finalidade suspender todas as posições transcendentes em busca da claridade em relação ao fenômeno que se apresenta. Na obra “A ideia da fenomenologia”, Husserl recorre a uma analogia a respeito da visão para exemplificar o que seria a referida claridade:

O ver não pode demonstrar-se; o cego que quer tornar-se vidente não o consegue mediante demonstrações científicas; as teorias físicas e fisiológicas das cores não proporcionam nenhuma claridade intuitiva do sentido da cor, tal como o tem quem vê (HUSSERL, 2008, p. 23).

A imagem evocada na citação pode ser sobreposta ao contexto da crise climática e social que experimentamos atualmente, para a qual a racionalidade instrumental hegemônica (fundada em conhecimentos transcendentes) não proporciona claridade, muito menos dá suporte para uma experiência humana coletiva diferente.

Pelo contrário, a cegueira dessa racionalidade para o fato de que a Terra é um organismo vivo é própria força motriz dessa realidade distópica. O antropólogo Estruturalista Claude Lévi-Strauss, no livro “Tristes Trópicos” expressa uma reflexão filosófica em torno dos registros das expedições empreendidas pelo pesquisador entre 1935 e 1939 às nações indígenas Caingangue, Cadiueu, Bororo, Nambiquara, Mondé e Tupi-Cavaíba.

O autor relata que, “quando, por volta de 1560, Montaigne encontrou em Rouen três índios brasileiros trazidos por um navegante, perguntou a um deles quais eram os privilégios do chefe (disse ‘o rei’) em seu país; e o indígena, ele próprio um chefe, respondeu que era ser o primeiro a caminhar para a guerra”. Em 1930, quando Lévi Strauss teve sua própria experiência com os indígenas, constatou que mesmo depois de 370 anos a autoridade de uma liderança indígena ainda era - e ainda é - fundamentada na generosidade, no ato de servir à coletividade que representa.

Ao perceber a falta de exemplos de tal dignidade na modernidade fundada na racionalidade instrumental, compreende que algo se perdeu. Reconhece certa “desagregação de uma ordem original”, mas não consegue explicar. Simbolicamente, a obra Tristes Trópicos ilustra a cura da cegueira de um cientista europeu a respeito da violência e da miséria da chamada sociedade civilizada quanto ao esgotamento da vida humana a partir do contato com as etnias indígenas.

Esse algo que se perdeu é explicável no âmbito da experiência e do conhecimento imanente - tanto do passado, quanto do presente. A Fenomenologia tem potencial para ser um dos instrumentos científicos aptos a dar espaço a uma (cons)ciência sensível que nos permita (re)conhecer a Vida.

REFERÊNCIAS: 

CAMBI, Jeniffer. Fórum da Natureza. O progresso suicida de um povo sem alma, sem mente, sem gente, sem vida. Disponível em: https://forumdanatureza.org.br/t/o progresso-suicida-de-um-povo-sem-alma-sem-mente-sem-gente-sem-vida/411. Acesso em: 09 out. 2024. 

CULTURA ANIMI. Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss. Disponível em: https://www.culturaanimi.com.br/post/tristes-tr%C3%B3picos-de-claude-l%C3%A9vi strauss. Acesso em: 09 out. 2024. 

FOLHA DE SÃO PAULO. Cultura europeia está ameaçada, disse Lévi-Strauss à Folha em 1989. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100 anos/2021/12/cultura-europeia-esta-ameacada-disse-levi-strauss-a-folha-em-1989.shtml. Acesso em: 09 out. 2024. 

HUSSERL, E. A ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados. 

MASSUELA, Amanda; WEIS, Bruno. Revista Cult. O tradutor do pensamento mágico. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/ailton-krenak-entrevista/. Acesso em: 08 out. 2024. 

REVISTA CASA COMUM. “Temos que ter a coragem de ouvir a terra”, afirma Ailton Krenak. Disponível em: https://revistacasacomum.com.br/temos-que-ter-a coragem-de-ouvir-a-terra-afirma-ailton-krenak/. Acesso em: 08 out. 2024.

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 

SOUZA, Marcela Coelho de; FAUSTO, Carlos. Reconquistando o campo perdido: o que Lévi-Strauss deve aos ameríndios. Revista de antropologia, v. 47, p. 87-131, 2004. 

ZILES, Urbano. Fenomenologia e teoria do conhecimento em Husserl. Periódicos de Psicologia, 2016. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809 68672007000200005#:~:text=Para%20Husserl%2C%20a%20fenomenologia%20%C3 %A9%20uma%20descri%C3%A7%C3%A3o%20da%20estrutura%20espec%C3%ADf ica,que%20ela%2C%20enquanto%20consci%C3%AAncia%20transcendental%2C. Acesso em: 08 out. 2024.   

 

Compreensão fenomenológica e o mundo atual

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Leonardo Quadros Schroeder Pontes.

O autor Edmund Husserl (2008), ao abordar o tema de maneira mais detida, possuía como intento compreender os fatos ocorridos no mundo como fenômenos e, para tanto, descreve um método que entende a fenomenologia com um retorno a consciência inicial, cujos autores e pesquisadores permanecem esvaziados de preconceitos e crenças, buscando questionar as certezas definidas e perguntar sobre aquilo que parece evidente, visando a essência do fenômeno. A essa essência, chega-se através de método chamado redução fenomenológica, buscando questionar e fazer uma análise crítica para a busca da essência e retorno à consciência.

 De maneira bastante clara, ao dissertar sobre o primeiro grau da consideração fenomenológica, aborda a questão do conhecimento e a dificuldade em negá-lo, mas sim, questiona as realizações que lhe são atribuídas, ou seja, o conhecimento é o próprio ponto de partida das incertezas postas e, assim, há dificuldade em deixá-lo de lado, mas, seu resultado prático é questionável. Partindo para uma reflexão gnoseológica, entende-se que seria inquestionável o conhecimento, mas, por outro lado, há questionabilidade destes quando há uma propensão a dúvida, isto é, a falta de certeza absoluta. Na prática, pode se enxergar essa realidade no tribunal do júri, quando apesar da produção de prova robusta e embasado por vezes em conhecimento científico de produção de provas, torna-se o conhecimento objeto de dúvida dos jurados, cuja função neste caso, seria absolver o réu, diante de uma percepção diversa dos julgadores em relação aos produtores de provas.

Fonte: https://www.ex-isto.com/2018/08/fenomenologia-pratica-psicoterapia.html

Penso que um aspecto interessante trazido pelo autor, é o que chama de fenomenologia transcendental, cujo valores sedimentam-se na consciência pela consciência, compreendendo os fenômenos em duplo sentido, quais sejam: no sentido da aparência e, por outro lado, no sentido da objetividade que se desconecta de toda posição empírica estabelecida. Porém, ainda que busquemos essa reflexão e entender o mundo como fenômenos ausentes de vieses de compreensão daquilo que é posto a nossa apreciação, de maneira acertada o autor Schutz (2002) faz importante destaque sobre aparência, objetividade e rompimento com posições empíricas, pois revela que as coisas até então pensadas e postas para a realidade não podem ser confrontadas quando não há argumentos ou fatos divergentes que possam fundamentar o questionamento da primeira, ou seja, ainda que valores de consciência sejam reflexivos e valorosos para percepção e construção de nova realidade, apenas isso por si só não teria o condão de modificar uma coisa pensada. 

 A concepção de real e irreal parte-se de dois aspectos mentais. O primeiro deles é que todos somos capazes de conceber o mesmo objeto de formas diferentes e, que podemos escolher a forma que queremos pensar aderindo a um lado ou outro. Atualmente, percebo que essa concepção divergente e percepção de realidade estão bem aparentes no cenário político, cuja escrita em livro do filósofo americano Thomas Sowell (, revela-se muito claramente as formas de percepção de mundo e seu entendimento de modo restrito ou irrestrito, deixando evidente que as convicções de formação do ser humano quando construídas por longo período de maneira inquestionável, o torna incapaz de perceber o outro lado e partir para uma negação absoluta do viés contrário, não obstante provas ou formas que o conferem a nova realidade, ou seja, a total impossibilidade de fazer uma análise de consciência e entender o mundo como fenômeno, ausente de crenças primeiras. Inclusive, traz em seu livro uma citação de Bertrand Russel, que afirma: “todo homem, aonde quer que vá, está cercado por uma nuvem de convicções que o acompanha como moscas em um dia de verão.” 

A abordagem trazida no texto de Dom Quixote fala exatamente disso, como podemos nós e o próprio personagem manter nossas crenças em um universo fechado que escolhemos como ser nosso reduto de conhecimento e ideologia, quando sofremos diariamente diversas disrupções que transcendem nossas experiências. A bem da verdade, como aconteceu com Dom Quixote no seu mundo da cavalaria, quando nos confortamos com determinado posicionamento em permanecemos lá inabalável e inquestionável, não nos levamos a um exame de consciência para entender os demais fenômenos que nos cercam e, mantemos a base de pensar conforme o tempo, local e causalidade. Parece bastante real a mensagem que traz o texto quanto a expressão da atividade humana na atualidade e, naturalmente as várias facetas adotadas conforme as particularidades vivenciadas. Dom Quixote, também se caracteriza por adotar em cada uma de suas expedições maneiras totalmente diferentes de agir conforme seu mundo particular e, assim como no nosso mundo real, experiências comuns referentes aos mesmos objetos podem trazer experiências diversas, cuja bolha impenetrável que vivemos não nos permite ver o outro lado, fato este que ocorre diuturnamente e nem se apercebemos da falta de reflexão e compreensão de mundo do outro.

 Assim, penso que toda essa estrutura intrincada de pensamentos, experiências, crenças, reflexões de consciências, passam necessariamente pelo que Schutz (1979) afirma ser a Filosofia Fenomenológica, cuja análise filosófica ultrapassa os métodos das ciências sociais para responder determinadas questões que envolvem o outro ser social, sua cultura, língua e forma de agir e pensar, partindo de uma percepção psicológica da consciência pessoal e compreensão da reflexão. Por fim, creio que em uma realidade separatista e difusa como estamos vivendo, onde as mais variadas fontes de informação são tomadas como verdade absoluta e, havendo interesses de pessoas e governos na manutenção do “status quo”, não vislumbro num curto prazo o exame de consciência necessário para que possamos entender e desenvolver uma sociedade mais justa e solidária, e que atenda o interesse da maioria mediante uma reflexão social.

Referências bibliográficas:

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados. 

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Schütz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 

SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 

SOWELL, T. Conflito de Visões: origens ideológicas das lutas políticas. São Paulo: Realizações, 2012.  

O papel da intersubjetividade e da redução fenomenológica no apoio a formulação de novas políticas públicas

Pequeno ensaio produzido acadêmico Julio Cesar Schvambach.

A formulação de novas políticas públicas que atendam aos verdadeiros dilemas sociais é uma necessidade constante do administrador público. Essas políticas públicas não têm apenas uma visão tecnicista sob uma ótica orçamentária, mas também consideram o benefício que trazem ao cidadão, tanto econômico quanto social. Na ausência de uma formação adequada do gestor público, que é o tomador de decisão, muitas soluções acabam sendo importadas ou inspiradas em casos de sucesso externos. No entanto, ao serem aplicadas, essas soluções muitas vezes não produzem o mesmo efeito que no seu local de origem, ou até mesmo não têm efeito algum. Isso ocorre porque o método utilizado não considera as diferenças culturais, sociais, econômicas e étnicas da comunidade ou sociedade-alvo dessa política importada.

Levando em consideração um país de dimensões continentais como o Brasil, com culturas tão diversas dentro de um mesmo território, o presente trabalho propõe uma nova análise a partir da abordagem epistêmica da Redução Fenomenológica e da Intersubjetividade, visando a uma compreensão do problema a ser estudado pelo que ele é, livre de crenças pré-concebidas e externas.

Um dos principais desafios do formulador de políticas públicas, ao planejar uma nova política ou revisar uma já existente, é torná-la relevante e efetiva ao público-alvo a que se destina. Ao longo dos últimos 80 anos, desde meados da década de 1950, muito se tem debatido sobre o melhor modelo de formulação de políticas públicas, muitos inclusive apresentando um modelo cíclico, como o de Laswell em 1956. Embora conceitualmente coerentes e factíveis, os modelos de políticas públicas criados desde 1950 até os dias atuais foram pensados dentro de uma realidade do Norte Global, em países europeus com uma cultura colonizadora. Embora esses países tenham enfrentado desafios sociais semelhantes aos de países como o Brasil, possuem uma bagagem social muito diferente, pois não carregam consigo as mazelas da colonização forçada, da escravidão, do genocídio de povos originários e da exploração das riquezas. De que forma, então, poderíamos pensar em políticas públicas voltadas para a realidade brasileira? E mesmo dentro do Brasil, um país de dimensões continentais, como considerar tantas realidades culturais e socioeconômicas diversas? Um ponto de partida pode ser a Redução Fenomenológica.

Fonte: https://wash.net.br/wash-divulga-eventos-com-arte-educador-na-unicamp-e-forum-por-uma-justica-epistemica/

A Fenomenologia, enquanto campo de estudo das ciências sociais e da epistemologia, concentra-se em entender o objeto de estudo ou o indivíduo a partir de uma visão pura, livre das lentes das experiências e crenças pessoais, para analisar o outro ou o objeto pelo que ele é, e não pelo que eu acredito ou desejo que ele seja. Edmund Husserl, um dos principais expoentes dessa corrente epistemológica, afirma que só é possível encontrar o outro enquanto pessoa a partir do encontro do eu enquanto ser. A essa dinâmica de se comunicar com o outro ao mesmo tempo em que conhecemos a nós mesmos, damos o nome de Intersubjetividade.

A Intersubjetividade e a Redução Fenomenológica oferecem uma nova dinâmica na proposição de soluções para dilemas sociais ao se diferenciarem do Positivismo, que se preocupa apenas com a medição, os fatos e a visão utilitarista de prazer e benefício. Também se distinguem da Dialética de Hegel e Marx, que necessita de tese, antítese e síntese, além de uma realidade historicamente construída a partir da luta dos contrários. Contudo, a Redução Fenomenológica não nega a carga experimental anterior nem as crenças, mas apela para um distanciamento momentâneo dessas para observar o objeto da pesquisa pelo que ele realmente é. Isso nos permite pensar em soluções de problemas sociais de forma mais profunda, partindo do problema em si e da visão de quem o vivencia cotidianamente. Assim, podemos perceber que crenças pré-concebidas a partir de uma visão exterior nem sempre podem resolver de fato aquele desafio social.

A Redução Fenomenológica não exclui a lente ideológica nem a necessidade de explicar ou metodologizar o objeto de estudo da política pública social. No entanto, ao não abordá-la a partir dessas premissas, permite ao formulador de políticas públicas uma observação atenta e livre de preconceitos, a partir da visão do outro, conhecendo ao mesmo tempo quem vivencia a mazela social e a si próprio. Com essa visão, percebe-se que talvez a receita ou o método externo, importado fora de contexto, não seja a melhor solução para conceber a política social proposta. A visão intersubjetiva do problema e dos indivíduos nele inseridos permite não apenas uma compreensão maior do desafio, mas também respostas mais assertivas e que demandem menos correções futuras.

 

REFERÊNCIAS

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

 

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

 

FISCHER, F.; MILLER, G. J.; SIDNEY, M. S. Handbook of public policy analysis: theory, politics and methods. New York: CRC Press, 2007.


Fenomenologia: Uma jornada de coragem para novos caminhos

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Mariana Ribeiro Pires.

A fenomenologia, como a jornada de Dom Quixote, convida a um enfrentamento corajoso: a busca pela essência da experiência humana, desafiando concepções preestabelecidas e mergulhando na subjetividade como ponto de partida para a compreensão da realidade. No contexto da administração a fenomenologia, com seus conceitos de intersubjetividade, múltiplas realidades e epoché, oferece ferramentas valiosas para a pesquisa e para a prática, abrindo caminho para uma compreensão mais autêntica e profunda dos fenômenos organizacionais.

 Assim como Dom Quixote, que em sua obra desafiava convenções e ousava romper com a realidade em busca de seus ideais, a fenomenologia nos instiga a questionar o status quo e a investigar a experiência humana em sua integralidade. Schütz, em "Fundamentos da Fenomenologia", nos adverte sobre a dificuldade em apreender o real significado da fenomenologia, frequentemente confundida com abstrações metafísicas e vista como um obstáculo ao rigor científico.

Fonte: https://www.culturagenial.com/livro-dom-quixote-de-miguel-de-cervantes/


É preciso, portanto, um ato de coragem intelectual para abandonar a visão simplista que relega a fenomenologia ao campo da "anticiência" e reconhecer seu potencial para a investigação rigorosa da experiência humana. A obra de Schütz, inspirada em Husserl, nos guia nessa jornada, conclamando-nos a buscar a essência dos fenômenos a partir da experiência vivida, reconhecendo a subjetividade como elemento indissociável da pesquisa. 

A obra de Edmund Husserl, "A Ideia da Fenomenologia", é crucial nesse contexto, pois apresenta a fenomenologia como uma "ciência de essências". Husserl argumenta que a ciência moderna, em sua busca por objetividade, afasta-se da experiência vivida, tratando os fenômenos como meros objetos quantificáveis. A fenomenologia, em contrapartida, busca retornar à "coisa mesma", à experiência em sua pureza, livre de pressuposições e abstrações. 

A epoché, princípio fundamental da fenomenologia husserliana, exige um esforço consciente e metódico para suspender os julgamentos prévios, as ideias preconcebidas, e abrir espaço para que a essência dos fenômenos se revele. Esse "colocar entre parênteses" não significa negar a realidade, mas sim abordá-la de forma diferente, buscando compreendê-la a partir da consciência.

As "experiências significativas" ganham destaque nesse processo. Schütz destaca a importância da intencionalidade da consciência, ou seja, a capacidade da consciência de estar sempre direcionada para algo, de conferir significado aos objetos e experiências. A intencionalidade, portanto, é o fio condutor que conecta a consciência ao mundo, conferindo sentido à experiência.

Compreender a experiência do outro exige um esforço de descentramento, de colocar em perspectiva nossas próprias vivências e preconceitos, reconhecendo a alteridade e buscando uma aproximação autêntica do significado que o outro atribui à sua realidade. A intersubjetividade, nesse contexto, não se configura como uma mera soma de subjetividades, mas como um espaço de encontro, diálogo e construção de sentido compartilhado, onde diferentes perspectivas constroem a realidade social. 

 A análise de Schütz sobre a obra "Dom Quixote", em "Dom Quixote e o Problema da Realidade", ilustra a coexistência de múltiplas realidades, representadas na obra pelos personagens Dom Quixote e Sancho Pança. Dom Quixote, imerso em seu mundo idealizado de cavalaria, personifica a busca por materializar uma realidade individual, enquanto Sancho Pança, por outro lado, com seu senso prático, representa a realidade compartilhada e o senso comum. Essa dualidade, presente na obra de Cervantes, levanta importantes questões para o campo da administração: como conciliar diferentes perspectivas e realidades no contexto organizacional? Como construir pontes entre o mundo idealizado e a realidade da prática administrativa?

A fenomenologia, nesse sentido, atua como um mapa, guiando o pesquisador através da complexidade do mundo social. Mas, diferente de um mapa tradicional, que busca representar o mundo objetivamente, a fenomenologia se propõe a mapear a experiência subjetiva, a maneira como os indivíduos percebem, interpretam e constroem a realidade. Ferramentas como a "atenção à vida" (attention à la vie), proposta por Schütz, nos convidam a observar o mundo com um olhar renovado, atentos aos detalhes do cotidiano e às nuances da experiência humana. 

A fenomenologia, como um convite à exploração do conhecimento, nos incita a abandonar o conforto das certezas absolutas e a nos imergir na complexidade da experiência humana, reconhecendo a riqueza da subjetividade, da intersubjetividade e das múltiplas realidades que compõem o mundo. No campo da administração, a fenomenologia se destaca como uma ferramenta poderosa para a construção de um conhecimento mais humano, ético e conectado com a realidade, capaz de gerar insights valiosos tanto para a pesquisa quanto para a prática. Em última análise, ao traçar um paralelo com o meio universitário, podemos associar a fenomenologia à extensão universitária, que, com sua vocação de conectar a universidade com a sociedade, encontra na fenomenologia um terreno fértil para o diálogo e a transformação social. Ao romper as barreiras entre a academia e o mundo real, a extensão universitária pode promover uma compreensão mais profunda e contextualizada dos problemas sociais, além de contribuir para a construção de soluções mais justas e eficazes.

REFERÊNCIAS: 

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 

SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.


 


Movimento dialético do pensamento e a morte do pensar: contribuições da dialética para superar a intolerância e polarização

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maria Luíza Lauxen Della Valle.

A intolerância e recusa em assumir os diferentes, com surgimento num sistema de valores que não aceita opiniões divergentes (Ferreira et al, 2020), no qual o indivíduo é seu único e próprio referencial, é seriamente agravada quando encontra-se em cenários de polarização de identidades e opiniões, onde as diferenças socialmente construídas e reconhecidas tornam-se desafios para a civilização e convivência em sociedade.

 Em “Eichmann em Jerusalém”(1963) e “A Vida do Espírito”(1978), Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã, auxilia a analisar a intolerância como “banalidade do mal” e aponta a necessidade de “buscar alternativas para superá-la através das reflexões sobre a natureza do pensamento e suas possibilidades” (Andrade, 2009, p.152).

Apesar de a filósofa alemã estudar a faculdade do pensar ao analisar as causas da banalidade do mal, identificadas como a irreflexão e incapacidade do pensamento, por sua vez causado pela superficialidade e superfluidade (Andrade, 2009), as graves consequências do fenômeno da intolerância frente a sua intensificação causada pela polarização, instigam a busca de alternativas para superá-la através das reflexões sobre a natureza do pensamento por meio de múltiplas filosofias, que possam apontar para sistemas de compreensão da realidade que valorizem o diferente e a mudança.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) contribuem para a discussão ao compreenderem a essencialidade da mutabilidade do pensamento por meio da dialética, que consiste num sistema de compreensão do mundo em busca da verdade, onde “o repouso para o pensamento equivaleria à morte” (Foulquié, 1978, p. 61). O primeiro, de tradição idealista, concentra a dialética nas categorias do pensamento (dialética do pensamento), já o segundo, de tradição materialista histórica, apresenta a forma geral como a dialética opera, compreende a matéria como essencialmente movimento, e observa que por meio da dialética “achara-se o caminho para explicar a consciência dos homens através da sua maneira de viver, em vez de se explicar, como se fazia antes, a sua maneira de viver através da sua consciência” (Foulquié, 1978, p. 55).

 Adialética do pensamento e das coisas são marcadas pelo dinamismo e movimento da realidade e da matéria, onde estudam-se as contradições- que constituem momentos necessários do pensamento, na própria essência das coisas a partir da luta dos contrários. A manifestação de uma ideia exteriorizada no mundo conforma-se através do processo dialético, composto pelos momentos de tese, antitese e sintese- afirmação, negação e negação da negação. Mediante a contradição/negação de uma afirmação, gera-se a síntese, que tem de conter o que há de verdadeiro na afirmação- “o ser é” e na negação- “o ser não é”.

Entende-se que a intensificação do fenômeno da intolerância que se dá por meio da polarização, ultrapassa o debate de posições contrárias e/ou diferentes, onde até mesmo este último é exaurido. O pensamento do indivíduo se restringe à sua afirmação inicial, sem levar   em conta a contradição, nunca conseguindo ultrapassá-la. As características da intolerância revelam a desconexão com o movimento da realidade e do processo dialético ao desconsiderar a negação ou simplesmente a mudança/movimento da sua própria afirmação, e falham em reconhecer “o Devir”, que, contudo, ainda é provisório.

Fonte: #Charge: Intolerância. - Blog do AFTM

Assim, a necessidade apontada anteriormente, pela busca de alternativas para superar a intolerância através das reflexões sobre a natureza do pensamento encontra fundamentos na dialética para subsidiar formas críticas de pensar que valorizem a transformações que ocorrem no espírito e nas coisas (Foulquié, 1978), bem como reconheçam a contrariedade existente na própria essência das coisas, que provoca seu movimento.

 A renovação de esforços necessários para o pensamento e o reconhecimento do “devir” característicos da dialética visam a verdade da realidade e combatem a estabilidade artificial, ceticismo e dogmatismo (Gurvitch, 1987), e por conseguinte tem potencial para promover a superação do fenômeno da intolerância e para a desconstrução de sociedades rigidamente polarizadas, ao passo que abrem caminhos para o diálogo através da síntese e sua superação indefinida.

Referências: 

FERREIRA et al. Midiatização, polarização e intolerância (entre ambientes, meios e circulações). Facos Ufsm, 2020. 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2019. 

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.

ANDRADE,Marcelo. Tolerar é pouco? Pluralismo, mínimos éticos e práticas pedagógicas. Rio de Janeiro: DP&Alli, 2009.

FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66. 

GURVITCH, G. Caracterização prévia da dialética. In: Dialética e sociologia. São Paulo: Vértice, 1987, p. 29-32.



O utilitarismo e sua relação com o individualismo metodológico

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Jéssica Machado Costa Firmiano.

Este paper analisa a teoria do utilitarismo, com foco nas contribuições fundamentais de Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Inicialmente, explora-se o utilitarismo de Bentham, que enfatiza o princípio da felicidade, e, em seguida examina as abordagens aprimoradas de Mill, que fazem distinções qualitativas entre diferentes tipos de prazer. O objetivo é compreender como a teoria utilitarista evoluiu e suas implicações éticas ao longo do tempo.

O utilitarismo é uma teoria ética que avalia a moralidade das ações com base em suas consequências, visando maximizar o bem-estar geral. Jeremy Bentham e John Stuart Mill são dois filósofos que desempenharam papéis essenciais na formulação e refinamento desta teoria, esse paper examina a contribuição dos filósofos.

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O utilitarismo de Jeremy Bentham um enfoque na maximização do prazer e na minimização da dor. O princípio da utilidade, busca construir a felicidade através da lei e da razão. Ele define que "o princípio da utilidade aprova ou desaprova qualquer ação com base em sua tendência de aumentar ou diminuir a felicidade do indivíduo envolvido" (Bentham, 1789, p. 2). Esse princípio aplica-se tanto a ações individuais quanto a medidas governamentais.

Bentham propôs o cálculo hedonista para avaliar a moralidade das ações, esse cálculo envolve a quantificação do prazer e da dor, considerando fatores como intensidade, duração, certeza, proximidade, fecundidade e pureza. Contudo, a dificuldade de quantificar prazeres e felicidade levanta questões sobre a aplicabilidade prática desse método. Como Bentham observou, "a medida do prazer é tão incerta quanto a própria natureza do prazer" (Bentham, 1789, p. 25).

De outra banda, John Stuart Mill aprimorou o utilitarismo ao introduzir a distinção entre prazeres superiores e inferiores. Mill argumenta que "é melhor ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito, melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito" (Mill, 2007, p. 22). Ele enfatiza que a qualidade dos prazeres deve ser considerada além da quantidade, defendendo que prazeres intelectuais e morais são superiores aos prazeres corporais.

Mill oferece uma visão mais complexa da moralidade ao levar em conta a qualidade das experiências. No entanto, a subjetividade envolvida na avaliação dos prazeres superiores levanta questões sobre a consistência e aplicabilidade de seus critérios. O filósofo reconheceu que a dificuldade está em determinar quais prazeres são superiores. Isso sugere desafios na aplicação prática dos princípios utilitaristas, dada a natureza subjetiva das avaliações.

Ambos os filósofos compartilham a premissa central do utilitarismo, que é maximizar o bem-estar geral e avaliar as ações com base em suas consequências. Enquanto Bentham adota uma abordagem quantitativa e hedonista, Mill introduz uma análise qualitativa dos prazeres. Bentham foca na soma total de prazer, enquanto Mill argumenta que alguns prazeres são mais valiosos do que outros. As ideias de Mill  expandiram a teoria, abordando a complexidade das experiências humanas e as variadas formas de satisfação.

As contribuições de Bentham e Mill foram cruciais para o desenvolvimento do utilitarismo, oferecendo perspectivas distintas sobre o princípio da felicidade, enquanto Bentham forneceu uma base clara com o cálculo hedonista, Mill avançou a teoria ao considerar a qualidade dos prazeres. Ambas as abordagens continuam relevantes por formar a base do utilitarismo.

Penso que o utilitarismo, tanto na versão de Bentham quanto de Mill, oferece uma lente interessante para analisar questões contemporâneas, especialmente em um mundo onde acabamos mais globalizado e interconectado. Um exemplo atual que pode ser discutido à luz dessas teorias é o uso das redes sociais.

Bentham, que prioriza a quantidade de prazer sobre a qualidade, pode ser exemplificado em relação as plataformas de mídia social sendo vistas como um exemplo de maximização da felicidade, já que milhões de pessoas se conectam, compartilham suas experiências e sentem prazer ao interagir virtualmente. Sob essa perspectiva as redes sociais podem gerar prazer imediato, entretenimento e oportunidades de comunicação globalizada.

Já no caso de Mill, penso em uma dimensão mais profunda e qualitativa, já que ele destaca que, embora as redes sociais possam gerar prazer superficial, os efeitos sobre a saúde mental, o isolamento social e a superficialidade das interações podem ser prejudiciais a longo prazo. Em termos de qualidade, Mill poderia sugerir que um prazer mais elevado viria de interações humanas significativas que enriquecem a vida das pessoas, á que as redes sociais, ao promover interações rápidas e muitas vezes vazias, podem contribuir para um bem-estar de menor qualidade.

Referências

Bentham, Jeremy. uma introdução aos princípios da moral e da legislação, 1789.

Mill, John Stuart. Utilitarismo, 2007.


O Utilitarismo, o Imperativo e a boa conduta

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maria Alice Martins.

A elucidação de princípios norteadores da conduta humana, especialmente da boa conduta, a conduta reta, ética e virtuosa, é para além de um exercício interessante, também, necessário em qualquer tempo e sociedade. Nesse sentido, evoca-se o utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) e traça-se contrastes e paralelos com a noção Kantiana de Imperativo Categórico para fins de explanação da temática, trazendo-se, ainda, a provocação relacionada aos limites da ótica utilitarista ante um dilema moral.

 Reconhecer o que move o ser humano é fundamental para compreender a sua conduta social. O princípio da utilidade reconhece a sujeição do ser à dor e ao prazer, colocando-a como fundamento desse sistema, cujo objetivo é construir o edifício da felicidade através da razão e da lei, aprovando ou desaprovando a ação segundo a tendência dessa aumentar ou diminuir a felicidade (BENTHAM, 1979). Em Kant (1724-1804), em contraste com o exposto acima, a motivação relaciona-se com a noção do dever de agir e, em conformidade, pauta-se também na racionalidade. A boa vontade passa pelos conceitos de dever e de respeito até o princípio do conhecimento moral da razão comum dos homens (HERRERO, 2001).

 São os interesses dos indivíduos que quando integrados em uma estrutura social geram o interesse coletivo. Pauta-se no princípio da utilidade quando a aprovação ou a desaprovação de alguma ação considera a tendência desta ação aumentar ou diminuir a felicidade da comunidade (BENTHAM, 1979). Entendendo-se a felicidade como prazer e a ausência de dor, uma existência isenta tanto quanto possível da dor, e tão rica quanto possível em prazeres, tanto na qualidade quanto na quantidade (MILL, 2007). Ora, pode-se ver alguma similaridade com a noção de Imperativo Categórico, ao se pautar a ação naquela conduta possível de replicar por todas, seria também aquela conduta capaz de gerar maior felicidade para o corpo social.

 Destacando-se o princípio da moralidade da ética de Kantiana: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal”. (HERRERO, 2001). Na medida que todos busquem a maximização da felicidade haveria de ser uma máxima aprazível de ser seguida. Ainda que o foco do utilitarismo esteja nas consequências e do imperativo categórico no dever da boa conduta moral, ambas prezam pela criação de um bem estar coletivo.

Durante a construção desse estado de bem estar nota-se outro contraste entre as correntes ora abordadas, no utilitarismo as ações válidas visam a felicidade da maioria das pessoas, ainda que cause danos a uma minoria, isso, na perspectiva kantiana, anula o sujeito, pois o torna objeto e o transforma em um meio para alcançar a felicidade de outrem ou de uma maioria, ao ferir a autonomia do sujeito não possui valor moral, na medida que a moralidade se dá pela universalização da motivação da ação, a saber, leis que são criadas pela razão tendo como base o dever em si (CORSI e WEBER, 2020). Relativo a vida coletiva, tem-se que, conforme Mill (2007), aqueles que não possuem afetos públicos ou privados e sentimento de companheirismo com os interesses da coletividade vive uma vida insatisfatória, sendo o egoísmo juntamente com a falta de desenvolvimento intelectual as principais causas desse estado de insatisfação. Logo, nota-se que o utilitarismo, olha pela felicidade do sujeito, ainda que prezando pela maioria.

Fonte: https://verdadenapratica.wordpress.com/2015/05/29/utilitarismo-e-seus-impactos/

A fim de ilustrar, ante o dilema moral dos trilhos do trem, onde é possível decidir direcionar o trem para trilhos onde há uma pessoa ou para onde há cinco pessoas amarradas aos trilhos, sob a perspectiva Kantiana, a ação é guiada por deveres e princípios universais, e certos atos são moralmente errados independentemente das consequências, não seria aceitável, portanto, tomar essa decisão, já um utilitarista, rapidamente responderia por decidir salvar as cinco pessoas em detrimento de uma, uma vez que objetivo é minimizar o sofrimento e maximizar o bem-estar.

Enfim, uma análise epistêmica sobre a boa conduta humana, individual e coletiva, pode evidenciar nuances quando analisada à luz de diferentes teorias que, de forma grosseira, prezam pelo mesmo bem estar coletivo. Olhando para o utilitarismo, onde busca-se a maximização da felicidade possível ou para a moral kantiana da universalização do dever ético, ambos encontram limitações, naturalmente, ante um dilema moral, e o campo de debate é infindável.

Referências: 

BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. 

CORSI, U. V; WEBER T. Immanuel Kant: Autonomia e Vontade, uma Crítica ao Utilitarismo. REVISTA SEARA FILOSÓFICA, Número 21, Inverno/2020, pp. 32-48, 2020. Disponível em:. Acesso em: 24 set. 2024. 

HERRERO, F. Javier. A ÉTICA DE KANT. Síntese: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 28, n. 90, p. 17–36, 2001. DOI: 10.20911/21769389v28n90p17-36/2001. Disponível em:< https://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/563.> Acesso em: 24 set. 2024. 

MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007

Injustiça Epistêmica: a exploração do trabalho epistêmico no ambiente acadêmico

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Patricia Terezinha Corrêa.

Goldman e Kidd (2020), caracterizam epistemologia como uma ciência ou um estudo do conhecimento, destacando que, para que uma epistemologia seja minimamente satisfatória, ela deve desempenhar um(ns) papel(éis) social(is). Isto é, os autores declaram que é possível que a epistemologia abrace perspectivas sociais sobre o conhecimento, sem que perca seus padrões epistêmicos tradicionais.

Com base no conceito de epistemologia, Kidd, Medina e Pohlhaus (2017) definem injustiça epistêmica como as formas de tratamento injusto associados as questões do conhecimento, compreensão e participação nas práticas comunicativas. Desta forma, os autores trazem diversos tópicos de tratamentos indevidos, sendo alguns deles: exclusão e silenciamento, mal-ouvidos ou mal representados, ter status ou posição diminuídos nas práticas comunicativas, diferenciais injustos de autoridade e/ou agência epistêmica, ser cooptado ou instrumentalizado etc. Ainda, os autores trazem quatro possíveis lentes usadas para identificar as injustiças epistêmicas: 1. Contrato Social e Ignorância Coordenada, com duas categorias: aquelas que estrutura relações imparciais entre os conhecedores (knowers – geralmente brancos), criando uma classe de sub-conhecedores (sub-knowers – geralmente não-brancos) e aquelas que desviam a atenção epistêmica em benefício da dominância (privilegiando os grupos dominantes); 2. Interdependência e Relações Epistêmicas; 3: Graus de Mudança e/ou Sistemas Epistêmicos e; 4. Trabalho Epistêmico e Produção do Conhecimento – relaciona-se com três categorias: 1. Injustiças agenciais epistêmicas; 2. Invalidação do trabalho epistêmico e; 3. Exploração do trabalho epistêmico de determinados conhecedores (exploram injustamente o trabalho epistêmico). 

Fonte: https://www.linkedin.com/pulse/la-filosof%C3%ADa-en-recuperaci%C3%B3n-miguel-alemany-h7ogf/

No tocante da lente do Trabalho Epistêmico e Produção do Conhecimento, especificamente sobre a categoria de exploração epistêmica Kidd, Medina e Pohlhaus (2017, citando Allen 2017; Hall 2017) traz que o poder não apenas suprime, mas também produz. Neste sentido, o caso dos alunos e jovens pesquisadores da Dinamarca que acusaram orientadores e cientistas mais velhos de roubo de ideias ganha um grande destaque. 

Um dos pesquisadores entrevistado por Marques (2022), afirma que viu seu orientador acrescentar uma lista de outros autores/pesquisadores que não tinham conexão alguma com sua pesquisa, inclusive pesquisadores estrangeiros, afirmou, ainda, que “Na minha opinião, foi um caso claro de intercâmbio de autoria, pois o nome do meu professor também foi visto em muitos trabalhos posteriores publicados por essa equipe do exterior”. Como este caso, Marques trouxe diversos outros casos parecidos: artigos escritos com base na dissertação de mestrado dos alunos, remoção do nome de alunos de seus projetos etc. 

Estes casos de exploração de trabalho epistêmico são muito comuns, pois os pesquisadores/alunos estão em posições desfavorecidas (não dominantes) em relação aos seus orientadores, e, muitas vezes, como em outro caso relatado por Marques (2022), os pesquisadores são excluidos e sofrem ameaças de retaliação, quando exigem reconhecimento. 

Neste sentido, Kidd, Medina e Pohlhaus (2017, citando Henning, 2015), relatam que uma forma de resistência a essa exploração epistêmica, seria os conhecedores (knowers) não dominantes se retirem das interações epistêmicas as quais eles avaliam justificadamente como exploratórias. 

Referências 

GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L. The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21. 

KIDD, I.J; MEDINA, J.; POHLHAUS, Jr., G. (Edd) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, 2017. Introduction e Capítulo 1 – Varieties of Epistemic Injustice. In: https://www.routledge.com/The-Routledge-Handbook-of-Epistemic-Injustice/Kidd Medina-PohlhausJr/p/book/9780367370633

REVISTA PESQUISA FAPESP. Alunos e jovens pesquisadores da Dinamarca acusam orientadores e cientistas mais velhos de roubo de ideias. Revista Pesquisa FAPESP, 25 jul. 2024. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/alunos-e-jovens pesquisadores-da-dinamarca-acusam-orientadores-e-cientistas-mais-velhos-de roubo-de-ideias/. Acesso em: 3 set. 2024.  

As formas epistemológicas e consequentes injustiças

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Leonardo Quadros Schroeder Pontes.

A abordagem trazida pelos textos escritos por Alvin Goldman (2020) e Ian Kidd e outros (2017), são conexos e complementares, quando tratam respectivamente do que seria a Epistemologia Social e suas três faces lá designadas e, ao mesmo tempo, a percepção trazida pelo segundo texto quando trata de injustiça epistêmica.

Em minha percepção, inicialmente, fica bastante claro que há de se separar a Epistemologia Tradicional da social, tendo em vista que a primeira está focada apenas no conhecimento e como ele pode ser produzido e justificado e, por outro lado, a Epistemologia Social está preocupada também com a coletividade de agentes epistêmicos, considerados em grupos, equipes ou instituições. Essa compreensão social epistemológica foi construída após a superação do entendimento egocêntrico de metodologia autocentrada de Descartes, que em o Discurso do Método (1979), aborda questões específicas baseadas na razão e comprovação científica de tudo sem qualquer ausência de dúvida, como se modelo matemático fossem. Nessa toada, como forma de afirmar a Epistemologia Social ainda com padrões tradicionais, estabeleceu-se três abordagens que corroboram o alegado, quais sejam: interpessoal, social e institucional.

Fonte:https://www.rededucativajamli.com/2017/03/banco-de-preguntas-filosofia.html

Certamente, vislumbro que essas teorias amplificam demais o debate, permitindo que o entendimento nessas três esferas de tudo se trate e se conecte com a Epistemologia tradicional, que se preocupa apenas com o conhecimento e não com as relações sociais. As riquezas das três fontes epistemológicas acima se permeiam quando se entende o processo de conhecimento alavancado por cada um de seus estágios, pois ao mesmo tempo que o caráter interpessoal é a formação de convicção por meio de ideias de terceiros que solidificam sua própria visão, a compreensão coletiva institucional decorre naturalmente da primeira. Entendo que cada um que possui suas convicções, sem questionar a origem, mas compreendendo que todo ser individual participa de uma coletividade e, por vezes, de compreensões institucionais, é perfeitamente crível que a leitura primária interpessoal decorra das pessoas mais próximas e, certamente a leitura coletiva ou de classe sobre determinado assunto será a mesma ou muito próxima. Assim, partindo para uma visão mais ampla fica mais fácil entender que o aspecto institucional é totalmente influenciado e incorporado pelas formas epistemológicas primeiras, cujas percepções e aceitações são solidificadas através da crença de seus membros, porém, não sendo considerados uma coletividade. 

Nesse sentido, seja qual for à forma de entendimento da Epistemologia Social, percebo que a injustiça epistêmica pode estar presente em qualquer delas e de variadas formas e, como revela o texto, a injustiça ocorre dentro das atividades e instituições em que os conhecedores se envolvem a conhecer. Percebo que o texto de Kidd, Medina e Pohlhaus (2017), define essa injustiça como a negação do direito a contribuir para o conhecimento ou desqualificar o conhecimento do outro, geralmente agindo com agentes privilegiados que se escoram em seus argumentos de autoridade ou precedência sobre o tema. De maneira bastante clara, definem os autores que nem sempre essa injustiça é voluntária, mas, afirmam que podem ter características testemunhais ou hermenêuticas. Mais precisamente acerca dessas duas modalidades, traz o texto o racismo como forma de ideologia e meio de legitimação da lógica anti-negra, o que de fato mostra-se grave quando se considera uma questão estrutural e de impacto geral inclusive no campo do conhecimento. Pedro Demo, em sua obra Metodologia Científica em Ciências Sociais (1981), já alertava no trecho em que abordava a Demarcação Científica, que a ideologia não é fonte da ciência e de demarcação, bem como reconhece a dificuldade de extirpá-la do processo de conhecimento, mas revela a necessidade de neutralizá-la quando do momento de pesquisas, ou no caso em específico, na percepção de produção de conhecimento seja qual for à raça ou etnia do conhecedor. 

Vejo de maneira muito evidente, dentro da instituição que trabalho que possui natureza militar, que há dois vieses bem claros de atuação epistêmica e suas injustiças. A primeira delas é o entendimento que agimos em regra como um grupo ou classe, com mesmos padrões conceituais, corroborando a ideia de Epistemologia Social Coletiva e, segundo, a percepção geral e injustificada que órgãos militares não são locais em que mulheres deveriam trabalhar e, que as mulheres que lá estão hoje, contribuem de maneira diversa da pretendida, bem como pouco sabem como contribuir para os aspectos gerais de conhecimento da instituição, sendo colocadas em segundo plano quando se trata de atividade operacional e administrativa. Penso que na mesma toada do preconceito com sul global quanto à produção de conhecimento em relação ao eixo americano e europeu, esse ponto de vista solidifica-se em instituições militares brasileiras, pois, de forma semelhante ao que ocorre no texto quanto às filósofas feministas que perceberam a dominância e opressão do patriarcado sobre sua produção de conhecimento, não é diferente penso quanto às mulheres militares em nosso país, que por vezes são subjugadas intelectualmente somente pela sua condição de ser mulher e, na atualidade, já demonstram ser muito mais capazes que os homens nas mais diversas atividades. Tudo isso, bem definidamente ocorre quando o que chama o texto de contrato social permite que aqueles que estão em posição de dominância desenvolvam uma arrogância epistêmica que não os fazem querer mudar o “status quo” e, no caso específico das mulheres militares, ou todas aquelas em que estejam em situação semelhante, pode-se caracterizar como exclusões de primeira ordem, ou seja, aquela que dá menos credibilidade a contribuição do conhecedor pelo preconceito de identidade, o que é fato presente nos mais diversos setores da sociedade. 

Referências Bibliográficas 

DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1981. 

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

KIDD, I.J; MEDINA, J.; POHLHAUS, Jr., G. (Edd) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, 2017. Introduction e Capítulo 1 – Varieties of Epistemic Injustice. In: https://www.routledge.com/The-Routledge-Handbook-of-Epistemic Injustice/Kidd-Medina-PohlhausJr/p/book/9780367370633 

GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21. 

A “fonte oficial” em xeque: como validar a veracidade das crenças produzidas por grupos epistêmicos institucionais

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Julio Cesar Schvambach.

Com a democratização dos meios de comunicação, as instituições e grupos epistêmicos chamados “fontes autenticadas” estão sob xeque. Antes praticamente inquestionáveis, agora os mesmos precisam se justificar diante de um grupo cada vez maior de pessoas que questionam a sua legitimidade e veracidade.

Diante da massificação das chamadas “Fake News”, um nome popular que se dá a um rumor falso, são necessários novos meios de fazer com que os grupos epistêmicos considerados como autoridade ou especialistas possam ter as crenças produzidas por eles validadas, e mais do que isso, ter os meios de participação social que garantam essa validação e justificação.

A epistemologia social é uma das principais interessadas na análise e no impacto de como essas crenças possuem uma participação social na sua formação e quais as crenças verdadeiras que são geradas a partir dela. O presente trabalho pretende trazer luz à presente discussão.

O capítulo 02 do livro “The Routledge Handbook of Social Epistemology”, que tem como título “The What, Why, and How of Social Epistemology”, escrito por Alwin Goldman (2020), começa com as três questões centrais sobre as quais se apoia a epistemologia social: “o que?”, “por que?” e “quando?”. O objetivo final da epistemologia, seja ela tradicional ou sua variante, a epistemologia social, busca fazer com que as pessoas possam ter crenças verdadeiras, ou pelo menos, melhores. No entanto, a discussão sobre o que seria uma crença verdadeira, ou como ela se fundamentaria como legítima e genuína, tem sido fonte de questionamentos e intensos debates ao longo do últimos 100 anos. A começar pelo debate iniciado na segunda metade do século que questionou a própria noção de verdade, racionalidade e objetividade, que geralmente eram colocadas tendo como pano de fundo interesses políticos e de dominação social.

Fonte: https://irmacaputoresearch.com/estudos_reflexoes/epistemologia-filosofia-estetica-e-filosofia-da-linguagem/

Um dos pontos que o capítulo 02 do livro mencionado acima trata é justamente o da Fonte Autenticada, assunto sobre o qual este paper pretende debater. Num momento em que o mundo passa por um questionamento dos modelos de sociedade vigentes nas democracias ocidentais, e a forma como se produziu ciência até então (levanto em consideração fatores como a justiça epistêmica), a chamada “fonte autenticada” tem sido questionada a respeito da sua genuinidade, autoridade e mesmo a neutralidade. Quando falamos de “fonte autenticada”, significa abordar, por exemplo, de grupos epistêmicos coletivos ou institucionais que fornecem informações e conhecimentos considerados como “oficiais”, que servem como parâmetro. Podemos, dentro dessa categoria, colocar os órgãos governamentais de estatística que tratam sobre saúde, emprego, renda e outras informações sociais. Também podemos colocar conselhos de classe como os conselhos de medicina, conselhos de engenharia, ou organizações do terceiro setor que se dedicam a pesquisar assuntos importantes como questões de segurança pública, inclusão e combate a formas de opressão e violência, entre outros.

Ao falar sobre duas das variantes da Epistemologia Social, a ES Interpessoal e a ES Coletiva, um questionamento fica evidente e quase gritante: a necessidade que temos de desacreditar nos rumores. Rumores seriam informações improvisadas ou incompletas que circulam entre um considerável número de pessoas. Já a “Fonte Autenticada” seria embasada pela palavra de um especialista, que teria, em tese, um conhecimento elevado sobre uma determinada área do saber. Mas como confiar e aceitar as declarações deste ou daquele especialista? E quando as palavras de especialistas diferentes entram em dissonância, qual das duas opiniões devem ser aceitas? Como aceitar que aquele saber não foi propositalmente manipulado?

Embora as respostas dessas perguntas ainda estejam em construção pelos epistemólogos sociais, podemos aventar algumas pistas para poder responder isso. A primeira, é que podem existir processos que são incondicionalmente confiáveis, não porque nunca errem, mas porque a partir dele se produz um número elevadíssimo de crenças verdadeiras. Porém, a questão da justificação e da racionalidade deve também ser condicionada a uma possibilidade de atestação por agentes epistemológicos distintos, que após a análise da crença produzida, poderão concordar ou não se ela é de fato verdadeira. Um exemplo real disso seria a auditoria nos processos eleitorais das nações democráticas. Apesar das respostas para a justificação das chamadas Fontes Autenticadas ainda serem incompletas, há pistas que nos permitem pelo menos deduzir a falibilidade destas e conduzir a sociedade a crenças melhores.


A epistemologia social nos faz refletir sobre como os grupos epistêmicos produzem (e se produzem) conhecimentos que resultam em crenças verdadeiras, tanto para eles próprios quanto para os membros das instituições que são geridas ou influenciadas por esses agentes ou grupos epistêmicos. A veracidade do que uma “fonte autenticada” produz de crenças vai depender da sua disponibilidade (ex.: ditaduras ou autocracias só possuem uma fonte autenticada, sem possibilidade de auditoria externa) e do quanto de crenças verdadeiras a partir do conhecimento produzido por ela é gerado. Num momento em que a internet massificou não somente as informações úteis como também os rumores infundados e sensacionalistas, é dever dos teóricos epistêmicos sociais se debruçar em busca de garantir a confiabilidade das crenças como também preocupar-se com o seu impacto social e o quanto as massas participam desses processos.

 

REFERÊNCIAS

GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L  The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21


A injustiça epistêmica no processo penal e a utilização do Tribunal do Júri como instrumento de epistemologia social

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Bruno Bertan Sartor.

Tal como previsto no texto do Kidd et al. (2071), a injustiça epistêmica se dá em diversas áreas das ciências, inclusive nas ciências jurídicas e na administração da justiça. O presente excerto trata acerca da injustiça epistêmica na administração da justiça, em específico no processo penal, bem como a utilização do Tribunal do Júri como instrumento de epistemologia social (GOLDMAN, 2020).

No direito processual penal, cujo código legal utilizado no Brasil é do ano de 1941, existem diversos resquícios de injustiça epistêmica. Kidd et al. (2017) assevera que é ainda comum essa espécie de injustiça estar presente dentro do sistema e práticas legais.

A apreciação da prova no processo criminal pelo juiz singular é um exemplo de injustiça epistêmica no âmbito judicial. Isso porque, em processos semelhantes, em que crimes iguais ou da mesma espécie são julgados, cada juiz, de acordo com os ditames legais e com base na sua interpretação do direito, pode julgar proferindo decisões diferentes e até mesmo contraditórias entre si (KIDD et al., 2017).

Uma das soluções para o problema apresentado, conforme pontua Kidd et al. (2017), seria a utilização de tribunais colegiados, ou seja, com mais de um membro julgador, de forma que a prova fosse analisada de forma conjunta. No Brasil, a Carta Constitucional de 1988, no capitulo reservado ao Poder Judiciário e à administração da justiça, estabeleceu que as decisões de segundo grau, quando há um recurso contra a decisão singular de primeiro grau, devem ser colegiadas. A análise conjunta da prova e de outros temas processuais possibilita que haja maior certeza no julgamento, reduzindo, assim, possíveis erros judiciais.

Fonte: https://www.tjma.jus.br/midia/cgj/noticia/513131/tribunal-do-juri-de-governador-nunes-freire-absolve-reu-por-homicidio

Porém, por influência do direito anglo-saxão, existe no Brasil, já no primeiro grau de jurisdição, a existência de um Tribunal colegiado, o denominado Tribunal do Júri, citado por Goldman (2020) como um instrumento de epistemologia social.

Epistemologia social é um ramo da epistemologia que prestigia os processos de tomada de decisões plurais, em um processo que se preocupa com toda a coletividade, em contrate com a epistemologia tradicional, que é voltada ao individualismo (GOLDMAN, 2020).

Em ciência a crença de um grupo coeso, e não apenas de um único indivíduo, tem um peso muito mais forte (GOLDMAN,2020). No âmbito judicial, os crimes dolosos contra a vida (homicídio, aborto, infanticídio e indução ao suicídio), em face de sua gravidade, são julgados por um tribunal coletivo, conhecido como “do júri”.

O Tribunal do Júri, composto por cidadãos maiores que cumprem certos requisitos legais, ao analisar o processo penal em conjunto com o magistrado, possibilita que a decisão tomada (condenatória ou absolutória) seja protegida de erros e tenha uma força vinculante mais forte perante a sociedade.

Goldman (2020) cita o Tribunal Popular como uma forma de epistemologia social no âmbito do Poder Judiciário justamente por essa tomada de decisão coletiva, onde o colegiado é soberano.

Destarte, o exemplo do Tribunal do Júri, como instrumento de epistemologia social dentro da justiça tende a ser um farol para aqueles processos de tomadas de decisão individual. Em outros países, como os Estados Unidos da América, a regra, hoje, já é a utilização do Júri para julgamento da maioria dos crimes. Esse processo pode chegar até o Brasil, conforme algumas propostas legislativas que tramitam no Congresso Nacional.

Por fim, é de se ressaltar que a utilização do Tribunal Popular, além de um exemplo de epistemologia social, ajuda a evitar a injustiça epistêmica no âmbito judicial, já que a tomada de decisões se dá de maneira plural, com vários “pontos de vistas” existentes na sociedade sendo representados pelos jurados.

REFERÊNCIAS:

 

GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L  The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21.

 

KIDD, I.J; MEDINA, J.; POHLHAUS, Jr., G. (Edd) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, 2017. Introduction e Capítulo 1 – Varieties of Epistemic Injustice.


As origens do pensamento moderno: da antiguidade clássica ao empirismo e ao racionalismo

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Jean Teixeira Manoel.

           Este ensaio argumentativo apresenta minha percepção sobre as diferentes abordagens do pensamento cartesiano, conforme compreendido a partir do Discurso do Método, de René Descartes (1979), e da perspectiva histórica da ciência, baseada no que assimilei da obra de Kneller (1980), A Ciência como Atividade Humana. Descartes (1979) me levou a refletir sobre a importância da crítica individual para a construção de um conhecimento sólido e racional, enquanto Kneller (1980) destacou para mim o caráter coletivo e histórico do conhecimento científico, desenvolvido através da interação entre pesquisadores. Assim, o objetivo deste ensaio é argumentar, a partir da minha compreensão, que o desenvolvimento do conhecimento científico depende tanto da reflexão individual quanto da colaboração coletiva.

Em um dos trechos do Discurso do Método, Descartes (1979) distingue dois tipos de "espíritos" ou mentalidades. O primeiro tipo é o daqueles que acreditam ser mais habilidosos do que realmente são (Descartes, 1979), como uma pessoa que tenta resolver um problema complexo sem conhecimento suficiente e, ao se precipitar, acaba se perdendo. O segundo tipo é o daqueles que reconhecem suas limitações e preferem confiar nos julgamentos de outros mais experientes (Descartes, 1979), como alguém que, em vez de resolver um problema sozinho, busca orientação de um especialista. Ademais, outro ponto central do autor é o desenvolvimento de um método que possa ser aplicado a diferentes áreas do conhecimento, garantindo conclusões que não podem ser objeto de dúvidas. A construção desse método se baseia em quatro preceitos fundamentais: aceitar como verdade apenas o que é claro e evidente, dividir os problemas em partes menores, conduzir o pensamento de maneira ordenada do simples ao complexo e revisar todos os aspectos de forma completa (Descartes, 1979). Observo que esses preceitos sublinham a necessidade de rigor e de uma abordagem metódica para evitar erros e omissões no processo de conhecimento.

A leitura de Descartes (1979) nos faz refletir também que o conhecimento seguro e verdadeiro não é fruto de intuições rápidas, mas de uma construção paciente, baseada em princípios sólidos e uma constante revisão. Isso pode ser aplicado diretamente ao desenvolvimento acadêmico e à prática científica, onde a clareza e a evidência são essenciais para a solidez das conclusões.




Fonte: https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/origem-e-peculiaridades-da-pesquisa-de-fenomenos-sociais-nas-ciencias-com-o-uso-de-grupos-focais

Por outro lado, ao ler A Ciência como Atividade Humana, de Kneller (1980), destaco a citação da ciência como o conhecimento da natureza e sua exploração, o que envolve história, métodos de investigação e a participação de uma comunidade de pesquisadores (Kneller, 1980). Percebi durante a leitura que a ciência é vista como um empreendimento coletivo e histórico, construído por meio da interação de comunidades científicas ao longo do tempo. Essa visão me faz lembrar que o conhecimento não é apenas um esforço individual, mas também depende da colaboração entre diferentes pesquisadores. Aplicando isso à minha pesquisa para a elaboração da dissertação, entendo que as entrevistas que pretendo realizar com os gestores de instituições de ensino não serão uma mera coleta de opiniões isoladas, mas sim parte de um processo maior de construção coletiva de conhecimento sobre a formação do aluno. Ao ouvir diversos gestores, conseguirei capturar diferentes perspectivas que, juntas, podem oferecer um conhecimento mais completo.

Logo, percebo que a historicidade da ciência revela que o conhecimento científico é um produto não apenas da lógica e da razão, mas também das condições históricas e culturais. No contexto de Descartes (1979) e de Kneller (1980), refleti que ambos os autores abordam a construção do conhecimento sob perspectivas diferentes, mas de forma complementar. Sob a minha percepção, Descartes (1979) ressalta a importância da reflexão crítica individual como fundamento para se alcançar um conhecimento seguro e racional, ou seja, cada pessoa deve reconstruir suas próprias crenças com base na razão, evitando suposições não verificadas. Por outro lado, em Kneller (1980), percebi que a ciência é uma atividade coletiva e histórica, onde o conhecimento se desenvolve por meio da colaboração entre diferentes pesquisadores e da construção conjunta de teorias ao longo do tempo. A partir dessas leituras, entendo que, como pesquisador, preciso buscar um equilíbrio entre a construção individual do conhecimento e a construção coletiva, pois considero que essas duas abordagens se complementam.

REFERÊNCIAS

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29


Epistemo o quê?

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Luciana Pereira da Rocha Safe.

Epistemologia. Pode ser conceituada pelo dicionário com a brevidade de algumas linhas. A saber: substantivo feminino. Conjunto de conhecimentos sobre a origem, a natureza, as etapas e os limites do conhecimento humano; teoria do conhecimento. Estudo crítico das premissas, das conclusões e dos métodos dos diferentes ramos do conhecimento científico, das teorias e das práticas; teoria da ciência.(Michaelis, 2024).

Contudo, o conceito linguístico não abarca toda a complexidade do conceito teórico. Greco (1999) apresenta a epistemologia em 526 páginas e 17 capítulos cujos teóricos argumentam cada campo conceitual. Partindo da premissa da definição do que é epistemologia Greco (1999) enfatiza que coexistem várias objeções que caricaturam a epistemologia como (a) a busca pela certeza, (b) a tentativa de encontrar fundamentos absolutos, (c) a tentativa de legitimar outras disciplinas, como a ciência, e (d) a projeto de refutação do ceticismo. Da mesma forma, Tsoukas e Chia (2011) contextualizam a epistemologia em 13 capítulos com diferentes óticas e percepções autorais.

No âmago conceitual parece mais fácil afirmar o que não é epistemologia, do que seria a epistemologia verificando todas as suas possibilidades. Ademais, no ceticismo como corrente epistemológica, Greco (1999) já infere que negar o saber ao se questionar o conhecimento de forma repetitiva é por si só incongruente por estudar um conhecimento na teoria sequer existiria. Greco (1999) apresenta entre os problemas tradicionais o ceticismo cuja questão central da teoria do conhecimento poderia ser: "O que podemos saber?" Ao responder de forma pessimista o cético nega que a existência de conhecimento. Inclui uma negação do conhecimento científico, mas significa incluir uma negação do conhecimento comum. Se no ceticismo dificilmente será possível chegar na ciência colocada a prova, adiciona-se que poderemos saber algo aplicando a dúvida em todas as instâncias? Se o cético conclui que não há como justificar as crenças em questão e que, portanto, não temos o tipo relevante de conhecimento, então, nunca seremos conhecedores de nada?

Fonte: https://filosofianaescola.com/conhecimento/epistemologia/
Fonte: https://filosofianaescola.com/conhecimento/epistemologia/

Por sua vez, Japiassú (1991) categoriza o saber, a ciência e a epistemologia. Sendo o primeiro, conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, sistematicamente organizados e suscetíveis de serem transmitidos por processo pedagógico de ensino. O segundo, conjunto das aquisições intelectuais com a matematização de dados empíricos. E o terceiro como estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento, de seus produtos intelectuais. E ainda o autor divide em tipos de epistemologia: global, particular e específica. Ressalta-se que desde o início da obra o autor nomeia “introdução ao pensamento epistemológico” corroborando que não se encerra a discussão e apenas se começa para outras que ampliam as ideias apresentadas. Por exemplo, ele apresenta a relação da filosofia das ciências, a história das ciências, a psicologia das ciências, e a sociologia do conhecimento. Certamente cada tópico poderia ser tema de um livro a parte

Portanto, estudar como o saber se consolida, ou como sabemos o que sabemos, deve ter sido algo pensado após a existência (ou a crença da existência) de um conhecimento prévio? Possivelmente não seria possível a epistemologia como estudo do saber, caso não fosse pressuposto que o saber exista como objeto de estudo.

Portanto, Demo (1985) quando enfatizava que o saber e a ciência tinham sua existência em um interesses de um grupo específico, ele estava certo. Contudo, o estudo do objeto dependendo da forma como se analisa poderia destruir o objeto de estudo conforme a analogia de Tsoukas (2005) quando na analogia do entomologista demonstra que no ímpeto de encontrar seu raro animal de estudo e colocar a lente para observar melhor termina por destruir o animal queimado com a luz da lente em conjunto com o sol. A questão seria então sanada pela epistemologia quando permite que diferentes lentes analisem o saber como objeto de estudo para não destruí-lo? Quiça faça sentido a questão de diferentes óticas para a própria epistemologia, uma vez que a ciência é justamente a proposta da construção e reconstrução das verdades.

Referências Bibliográficas 

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.

 GRECO, J. Introduction: What is Epistemology? The Blackwell Guide to Epistemology. Massachussets/Oxford: Blackwell Publishers Ltda, 1999, p. 1-33. 

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

MICHAELIS.Michaelis dicionário. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca? id=p5Mp. Acesso em: 08 de agosto de 2024. 

TSOUKAS, H. Introduction In: TSOUKAS, H. Complex Knowledge: Studies in Organizational Epistemology. Oxford. Oxford University Press, 2005. p 1-9. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt BR&lr=&id=h8gSDAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PR9&dq= 

TSOUKAS, H. & CHIA, Introduction: Why philosophy matters to organization theory? In: TSOUKAS, H. & CHIA, Philosophy and Organizational Theory. Bingley: Esmerald. 2011, p. 1-22