Movimento dialético do pensamento e a morte do pensar: contribuições da dialética para superar a intolerância e polarização

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maria Luíza Lauxen Della Valle.

A intolerância e recusa em assumir os diferentes, com surgimento num sistema de valores que não aceita opiniões divergentes (Ferreira et al, 2020), no qual o indivíduo é seu único e próprio referencial, é seriamente agravada quando encontra-se em cenários de polarização de identidades e opiniões, onde as diferenças socialmente construídas e reconhecidas tornam-se desafios para a civilização e convivência em sociedade.

 Em “Eichmann em Jerusalém”(1963) e “A Vida do Espírito”(1978), Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã, auxilia a analisar a intolerância como “banalidade do mal” e aponta a necessidade de “buscar alternativas para superá-la através das reflexões sobre a natureza do pensamento e suas possibilidades” (Andrade, 2009, p.152).

Apesar de a filósofa alemã estudar a faculdade do pensar ao analisar as causas da banalidade do mal, identificadas como a irreflexão e incapacidade do pensamento, por sua vez causado pela superficialidade e superfluidade (Andrade, 2009), as graves consequências do fenômeno da intolerância frente a sua intensificação causada pela polarização, instigam a busca de alternativas para superá-la através das reflexões sobre a natureza do pensamento por meio de múltiplas filosofias, que possam apontar para sistemas de compreensão da realidade que valorizem o diferente e a mudança.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) contribuem para a discussão ao compreenderem a essencialidade da mutabilidade do pensamento por meio da dialética, que consiste num sistema de compreensão do mundo em busca da verdade, onde “o repouso para o pensamento equivaleria à morte” (Foulquié, 1978, p. 61). O primeiro, de tradição idealista, concentra a dialética nas categorias do pensamento (dialética do pensamento), já o segundo, de tradição materialista histórica, apresenta a forma geral como a dialética opera, compreende a matéria como essencialmente movimento, e observa que por meio da dialética “achara-se o caminho para explicar a consciência dos homens através da sua maneira de viver, em vez de se explicar, como se fazia antes, a sua maneira de viver através da sua consciência” (Foulquié, 1978, p. 55).

 Adialética do pensamento e das coisas são marcadas pelo dinamismo e movimento da realidade e da matéria, onde estudam-se as contradições- que constituem momentos necessários do pensamento, na própria essência das coisas a partir da luta dos contrários. A manifestação de uma ideia exteriorizada no mundo conforma-se através do processo dialético, composto pelos momentos de tese, antitese e sintese- afirmação, negação e negação da negação. Mediante a contradição/negação de uma afirmação, gera-se a síntese, que tem de conter o que há de verdadeiro na afirmação- “o ser é” e na negação- “o ser não é”.

Entende-se que a intensificação do fenômeno da intolerância que se dá por meio da polarização, ultrapassa o debate de posições contrárias e/ou diferentes, onde até mesmo este último é exaurido. O pensamento do indivíduo se restringe à sua afirmação inicial, sem levar   em conta a contradição, nunca conseguindo ultrapassá-la. As características da intolerância revelam a desconexão com o movimento da realidade e do processo dialético ao desconsiderar a negação ou simplesmente a mudança/movimento da sua própria afirmação, e falham em reconhecer “o Devir”, que, contudo, ainda é provisório.

Fonte: #Charge: Intolerância. - Blog do AFTM

Assim, a necessidade apontada anteriormente, pela busca de alternativas para superar a intolerância através das reflexões sobre a natureza do pensamento encontra fundamentos na dialética para subsidiar formas críticas de pensar que valorizem a transformações que ocorrem no espírito e nas coisas (Foulquié, 1978), bem como reconheçam a contrariedade existente na própria essência das coisas, que provoca seu movimento.

 A renovação de esforços necessários para o pensamento e o reconhecimento do “devir” característicos da dialética visam a verdade da realidade e combatem a estabilidade artificial, ceticismo e dogmatismo (Gurvitch, 1987), e por conseguinte tem potencial para promover a superação do fenômeno da intolerância e para a desconstrução de sociedades rigidamente polarizadas, ao passo que abrem caminhos para o diálogo através da síntese e sua superação indefinida.

Referências: 

FERREIRA et al. Midiatização, polarização e intolerância (entre ambientes, meios e circulações). Facos Ufsm, 2020. 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2019. 

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. 1. ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.

ANDRADE,Marcelo. Tolerar é pouco? Pluralismo, mínimos éticos e práticas pedagógicas. Rio de Janeiro: DP&Alli, 2009.

FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66. 

GURVITCH, G. Caracterização prévia da dialética. In: Dialética e sociologia. São Paulo: Vértice, 1987, p. 29-32.



Nenhum comentário:

Postar um comentário