Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Amanda Marina Lima Batista.
Qual é a vida que conhecemos? Quais as vidas que reconhecemos? Como percebemos a Vida com nossas consciências? Ailton Krenak (2020) sugere que “pensemos na vida atravessando montanhas, galerias, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”, “água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição”. A ideia de conhecimento imanente, da Fenomenologia, conflui com o pensamento de Krenak e talvez seja uma parte do caminho para experimentar outra(s) vida(s).
Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859-1938) foi um filósofo alemão criador da Fenomenologia, que consiste no estudo dos fenômenos, ou seja, daquilo que aparece à consciência. O objetivo é explorar os fenômenos de forma direta, sem a intermediação de explicações científicas ou análises complexas prévias. Em sua abordagem, Husserl identifica dois tipos fundamentais de pensamento: o imanente e o transcendente.
Fonte: https://descomplica.com.br/blog/epistemologia-entenda-o-que-e-esse-campo-de-estudo-da-filosofia/ |
Segundo o teórico, “o conhecimento intuitivo da cogitatio é imanente, o conhecimento das ciências objectivas – ciências da natureza e ciências do espírito – mas também, vendo de perto, o das ciências matemáticas é transcendente” (Husserl, 2008, p. 22). A Fenomenologia tem como objeto o conhecimento imanente, ou seja, a descrição da estrutura específica do fenômeno (fluxo imanente de vivências que constitui a consciência) e, como estrutura da consciência enquanto consciência, ou seja, como condição de possibilidade do conhecimento.
De acordo com Schutz (1979), o primeiro fato indubitável de que Husserl parte é a existência de uma consciência em cada pessoa, em cada ser que afirma “eu penso” e “eu sinto” que participa da realidade coletiva. A vida pessoal da consciência é contínua e mutável, “comparável a um rio ou corrente” (Schutz, 1979, p. 57).
Parafraseando Schutz, é possível perceber que a vida pessoal da consciência é reconhecida pelas pessoas em geral nas noções de que o próprio pensar é sentido e que o estado mental de cada um é uma atividade interior diferente dos objetos com os quais cada pessoa interage. Nesse sentido, com a finalidade de acessar o conhecimento imanente a respeito do tema estudado, a ciência fenomenológica examina a forma como os sujeitos experimentam os eventos vivenciados.
Para que essa investigação ocorra de forma genuína, é necessário que o pesquisador assuma uma postura de redução fenomenológica, com a finalidade suspender todas as posições transcendentes em busca da claridade em relação ao fenômeno que se apresenta. Na obra “A ideia da fenomenologia”, Husserl recorre a uma analogia a respeito da visão para exemplificar o que seria a referida claridade:
O ver não pode demonstrar-se; o cego que quer tornar-se vidente não o consegue mediante demonstrações científicas; as teorias físicas e fisiológicas das cores não proporcionam nenhuma claridade intuitiva do sentido da cor, tal como o tem quem vê (HUSSERL, 2008, p. 23).
A imagem evocada na citação pode ser sobreposta ao contexto da crise climática e social que experimentamos atualmente, para a qual a racionalidade instrumental hegemônica (fundada em conhecimentos transcendentes) não proporciona claridade, muito menos dá suporte para uma experiência humana coletiva diferente.
Pelo contrário, a cegueira dessa racionalidade para o fato de que a Terra é um organismo vivo é própria força motriz dessa realidade distópica. O antropólogo Estruturalista Claude Lévi-Strauss, no livro “Tristes Trópicos” expressa uma reflexão filosófica em torno dos registros das expedições empreendidas pelo pesquisador entre 1935 e 1939 às nações indígenas Caingangue, Cadiueu, Bororo, Nambiquara, Mondé e Tupi-Cavaíba.
O autor relata que, “quando, por volta de 1560, Montaigne encontrou em Rouen três índios brasileiros trazidos por um navegante, perguntou a um deles quais eram os privilégios do chefe (disse ‘o rei’) em seu país; e o indígena, ele próprio um chefe, respondeu que era ser o primeiro a caminhar para a guerra”. Em 1930, quando Lévi Strauss teve sua própria experiência com os indígenas, constatou que mesmo depois de 370 anos a autoridade de uma liderança indígena ainda era - e ainda é - fundamentada na generosidade, no ato de servir à coletividade que representa.
Ao perceber a falta de exemplos de tal dignidade na modernidade fundada na racionalidade instrumental, compreende que algo se perdeu. Reconhece certa “desagregação de uma ordem original”, mas não consegue explicar. Simbolicamente, a obra Tristes Trópicos ilustra a cura da cegueira de um cientista europeu a respeito da violência e da miséria da chamada sociedade civilizada quanto ao esgotamento da vida humana a partir do contato com as etnias indígenas.
Esse algo que se perdeu é explicável no âmbito da experiência e do conhecimento imanente - tanto do passado, quanto do presente. A Fenomenologia tem potencial para ser um dos instrumentos científicos aptos a dar espaço a uma (cons)ciência sensível que nos permita (re)conhecer a Vida.
REFERÊNCIAS:
CAMBI, Jeniffer. Fórum da Natureza. O progresso suicida de um povo sem alma, sem mente, sem gente, sem vida. Disponível em: https://forumdanatureza.org.br/t/o progresso-suicida-de-um-povo-sem-alma-sem-mente-sem-gente-sem-vida/411. Acesso em: 09 out. 2024.
CULTURA ANIMI. Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss. Disponível em: https://www.culturaanimi.com.br/post/tristes-tr%C3%B3picos-de-claude-l%C3%A9vi strauss. Acesso em: 09 out. 2024.
FOLHA DE SÃO PAULO. Cultura europeia está ameaçada, disse Lévi-Strauss à Folha em 1989. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100 anos/2021/12/cultura-europeia-esta-ameacada-disse-levi-strauss-a-folha-em-1989.shtml. Acesso em: 09 out. 2024.
HUSSERL, E. A ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.
MASSUELA, Amanda; WEIS, Bruno. Revista Cult. O tradutor do pensamento mágico. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/ailton-krenak-entrevista/. Acesso em: 08 out. 2024.
REVISTA CASA COMUM. “Temos que ter a coragem de ouvir a terra”, afirma Ailton Krenak. Disponível em: https://revistacasacomum.com.br/temos-que-ter-a coragem-de-ouvir-a-terra-afirma-ailton-krenak/. Acesso em: 08 out. 2024.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SOUZA, Marcela Coelho de; FAUSTO, Carlos. Reconquistando o campo perdido: o que Lévi-Strauss deve aos ameríndios. Revista de antropologia, v. 47, p. 87-131, 2004.
ZILES, Urbano. Fenomenologia e teoria do conhecimento em Husserl. Periódicos de Psicologia, 2016. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809 68672007000200005#:~:text=Para%20Husserl%2C%20a%20fenomenologia%20%C3 %A9%20uma%20descri%C3%A7%C3%A3o%20da%20estrutura%20espec%C3%ADf ica,que%20ela%2C%20enquanto%20consci%C3%AAncia%20transcendental%2C. Acesso em: 08 out. 2024.