A Objetividade Positivista e a Administração: Limites e Possibilidades em busca de harmonia

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Mariana Ribeiro Pires.

Este short paper tem como objetivo analisar a influência do positivismo, especialmente a partir das ideias de Auguste Comte e Émile Durkheim, na construção de uma ciência da administração e em suas implicações para o campo administrativo. Além disso, realiza um contraponto com as ideias de Kant, que, como notas dissonantes, desafiam a harmonia da composição positivista, particularmente a respeito dos limites do conhecimento humano.

O positivismo, ao defender a observação objetiva e a busca por leis gerais, forneceu as bases para uma abordagem racional da administração, mas a transposição direta do método positivista para o campo social, marcado pela complexidade e subjetividade, apresenta limitações importantes, demandando uma adaptação crítica aos desafios contemporâneos.

Comte, em seu “Discurso sobre o Espírito Positivo”, define o positivismo como um estado de desenvolvimento intelectual da humanidade, caracterizado pela busca do conhecimento objetivo através da observação dos fenômenos e da formulação de leis gerais que os regem. Essa visão influenciou a nascente área da administração, que buscava se firmar como um campo científico e encontrar soluções racionais para os desafios da organização social. 

Durkheim, em “As Regras do Método Sociológico”, aprofunda essa perspectiva ao defender que os fatos sociais devem ser tratados como “coisas” e estudados de forma objetiva, tal como os fenômenos da natureza. Essa abordagem, baseada na observação e na experimentação, influenciou a busca por métodos de gestão mais eficientes e racionais, como a administração científica de Taylor, que visava otimizar o trabalho a partir da análise dos tempos e movimentos, assim como uma orquestra onde cada músico toca no tempo certo, a ciência como a maestrina que ajustaria cada movimento para que tudo funcione de forma eficiente e harmoniosa. 

É nesse ponto que as ideias de Kant, em sua obra “Crítica da Razão Pura”, se mostram particularmente relevantes para a nossa análise. Kant argumenta que o conhecimento humano é limitado pela estrutura da própria razão. Para ele, podemos conhecer o mundo não como ele é em si mesmo, mas apenas como ele se apresenta para nós através dos nossos sentidos e das categorias a priori do entendimento. 

Trazendo essa perspectiva para o campo da administração, podemos questionar a viabilidade da objetividade absoluta defendida pelos positivistas. A administração lida com diferentes melodias, com indivíduos e grupos, com suas motivações, valores, crenças e histórias de vida, aspectos subjetivos que não se encaixam perfeitamente no modelo positivista de análise.

Podemos ter como um exemplo prático comparando com a gestão de uma orquestra. A abordagem positivista buscaria identificar as melhores práticas de execução musical, baseadas em dados objetivos, como a precisão das notas, a sincronia entre os músicos e a qualidade do som. Entretanto, a motivação e a satisfação dos músicos são influenciadas por fatores subjetivos, como o ambiente de ensaio, o estilo de regência, o significado que a música tem para cada indivíduo e as relações interpessoais entre os membros da orquestra, fatores esses complexos e nem sempre passíveis de mensuração. 

Em síntese, o positivismo, especialmente a partir das ideias de Comte e Durkheim, forneceu as bases para uma abordagem racional da administração, fundamental para a consolidação da área. No entanto, a complexidade dos fenômenos sociais exige uma adaptação crítica dessa perspectiva. 

A administração, enquanto campo de conhecimento e prática, deve buscar um equilíbrio entre a objetividade e a sensibilidade para lidar com as dimensões humanas e sociais da organização, reconhecendo os limites do método positivista e buscando abordagens mais abrangentes para os desafios contemporâneos, como uma sinfonia que harmoniza a precisão dos instrumentos com a emoção da melodia. 

 Fonte: https://www.boomplay.com/songs/169660772

Referências: 

KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17. 

COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. 

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007
 

Alcance e os limites do saber no modo de viver urbano: diálogo entre as intuições sensíveis de Kant e fenômenos urbanos das grandes cidades sob a perspectiva sociológica

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica  Maria Luíza Lauxen Della Valle. 

 O contexto urbano é resultado do cruzamento de fatores econômicos, migratórios, sociais, culturais, entre outros. As perspectivas sociológicas acerca do fenômeno divergem entre compreendê-lo por sua interdependência ou autonomia em relação ao industrialismo, desenvolvimento econômico e monetário e ao capitalismo moderno (Wirth, 1967; Simmel, 1997). No entanto, as influências da modernidade nos modos de vida urbanos são inegáveis. A atual sociedade em rede, fruto da revolução tecnológica, tecnologias digitais, comunicação e transporte (Pinheiro; Castells, 1999), também é palco da homogeneização dos espaços, práticas e valores, onde a transmissão de informações e conhecimento, tem papel essencial para o fortalecimento de estruturas sociais e exercício de poder. Nesse contexto o “ser” pensante urbano deve adaptar-se a diminuição de barreiras espaciais, volatilidades dos processos e aceleração da vida urbana, de maneira que o “alcance e os limites da razão”(Revista Mente, Cérebro e Filosofia, 2005) passam a ser subordinadas à efemeridade e perda de referências espaciais e temporais.

O contexto e perspectiva apresentada são referenciais para o estudo da sociologia urbana, provenientes da escola sociológica de Chicago. As noções de aceleração e velocidade de fluxos e tempo no contexto moderno, propostas por Simmel, que representam a ruptura entre o espaçotempo e os sentimentos “...de instabilidade e de mudança permanente, intensificando a incerteza e a angústia” (Gomes, 2018; Haroche, 2014, p. 99), dialogam com as condições sensíveis do conhecimento e entendimento propostas por Immanuel Kant.

Immanuel Kant, filósofo influenciado por Descartes (1596-1650) e Hume (1711-1776), reúne a elementos do empirismo e racionalismo para propor uma ”metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há-de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular)” (Kant, 2015, p.40), com fins no saber dos princípios que tornam possível todo o conhecimento, bem como suas limitações e condições.

 É na obra “A Crítica da Razão Pura” (1781), livro que divide o período Pré-Crítico e Crítico de Kant, que o mesmo realiza análises e proposições para as condições do saber. Esta, é marcada pela Metafísica Crítica, diferenciando-se da tradicional por ser o próprio objeto de investigação crítica da razão, e do Idealismo Transcendental, filosofia que passa a conferir primazia ao sujeito e no modo de conhecer do mesmo, no lugar do objeto. O mesmo propõe que a única forma de conhecer a realidade é como lhe aparece, e não como realmente é, a partir das intuições/percepções: "o objeto dos sentidos se regula pela nossa faculdade de intuição" (Kant, 2015 p.30). É evidente as heranças de Kant dos empiristas, perante a adoção da noção de que todo conhecimento começa com a experiência, mas não surge apenas da experiência. O mesmo sugere que os conhecimentos podem surgir de fontes a posteriori, como a experiência, e fontes a priori, sendo aquelas que se dão independentes “de toda e qualquer experiência”, como a razão pura- momento onde ele se aproxima do racionalismo.

 Neste short paper volta-se olhares às condições a priori do saber, analisados por Kant, como Juízo a priori, Número e Fenômeno, Formas de entendimento (superior) e Formas de sensibilidade (inferior), sendo este último o objeto deste argumento. Como mencionado, Kant assume que conhecemos as coisas de forma a priori de acordo com nossas percepções e intuições, seguido de nosso entendimento e conceitos. As coisas como são, são identificadas como Número, e as coisas como percebemos, identificadas como Fenômenos. Os Fenômenos são as percepções fruto das sensações, sendo organizadas pelas formas a priori de sensibilidade- Tempo e Espaço. Estes, não são conceitos empíricos mas faculdades cognitivas e intuitivas, estritamente necessárias para qualquer percepção.

As condições para o saber atribuídas às faculdades cognitivas intuitivas da sensibilidade pelo filósofo alemão encontram obstáculos quando analisadas sob o modo e os produtos da vida urbana, onde o Espaço e o Tempo influenciam fortemente as percepções das coisas. Sérgio Ricardo Gomes, doutor em sociologia pela Universidade Federal do Sergipe reflete sobre as formas do juízo e de conhecer na metrópole: 

 “a proteção do intelecto se esfarela perante a avalanche de imagens, signos, símbolos e ideias produzidas em uma velocidade indecodificável … processo asfixiante de racionalização do tempo e do espaço que deteriora qualquer possibilidade de construção de referências. As repercussões psicológicas e sociais desses fenômenos alcançam todo o mundo, pois sua sede é a vida urbana, e hoje o mundo é urbano.” (Gomes, 2018, p.64)

Fonte: Estuda.com A charge ao lado representa a desconexão dos indivíduos à realidade corrente, onde o valor monetário torna-se valor pessoal, tendo em vista a perda da essência das coisas e seus valores específicos//

 Ainda, quando analisadas as repercussões psicológicas da aceleração e velocidade do Espaço e Tempo da modernidade, os obstáculos são intensificados, visto os crescentes graus de impessoalidade, individualidade, indiferença e fadiga dos indivíduos. Este fenômeno, é conceituado por por Simmel como atitude blasé- oriunda de motivos fisiológicos, como a maximização de estímulos nervosos que torna os indivíduos incapazes de sentir novas sensações, e econômica, por meio do “ embotamento do poder de discriminar” (Simmel, 1976, p. 16), tornando as coisas opacas e distantes, onde o dinheiro torna-se referencial e denominador comum (Tardelli, 2016).

 Entende-se que a perspectiva sociológica das condições de sensibilidade, Espaço e Tempo, diferencia-se da de Kant, as quais têm independência ao mundo externo e experiência humana, visto que os modos de vida urbano estão intrinsecamente ligados aos seus acessos, usos, significados, etc. No entanto, a Metafísica Crítica e o fenômeno sociológico se aproximam ao reconhecer o sujeito e seus modos de conhecer como centrais para a percepção das coisas, onde Números, de acordo com as sensações provenientes do Tempo e Espaço, tornam-se Fenômenos.

 A partir da reflexão realizada, e da constatação de que as faculdades cognitivas humanas não têm capacidade de responder plenamente aos fluxos atuais, levantam-se questões acerca de que maneira então, “determinar o alcance e os limites da razão a partir do exame dos elementos que a constituem”(Revista Mente, Cérebro e Filosofia, 2005)? Seria necessário para obtenção do conhecimento uma mudança nos modos de vida? Ou rever as Formas de Entendimento Kantianas para o ordenamento dos dados das percepções persuadidas? Ou ainda, para além de reconhecer que não é possível conhecer a realidade das coisas, estas são substancialmente subjetivas e influenciam diretamente a forma como nos relacionamos?

Referências:

WIRTH, L. 1967 [1938]. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro. 

SIMMEL, G. (1997). A metrópole e a vida do espírito. In: FORTUNA, C. (org.). Cidade, cultura e globalização: ensaios de sociologia. Oeiras: Celta, 33-45 [1903]. 

HAROCHE,C. Avida mental nas grandes cidades contemporâneas diante da aceleração e do ilimitado. In: PECHMAN, R. M. (Org). A pretexto de Simmel: cultura e subjetividade na metrópole contemporânea. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In. VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68. Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17 

GOMES,Sérgio Ricardo. Formas de subjetivação nas grandes cidades: modo de vida urbano em George Simmel e Louis Wirth. Praça: Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. V 2 n. 1 (2018).Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/praca/issue/view/2686 

TARDELLI, Gabriel. A Cidade como problema sociológico: diálogo com Georg Simmel e Louis Wirth. Revista eletrônica e-metropolis. Ed. 27 (2017). Disponível em: http://emetropolis.net/system/artigos/arquivo_pdfs/000/000/203/original/emetropolis27_art2.pdf? 1485999160 

PINHEIRO, E. G. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1. Informação & Sociedade, [S. l.], v. 10, n. 2, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/337. Acesso em: 11 set. 2024

Equidade científica: da periferia aos muros da Universidade

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Jéssica Gomes Lima. 

Historicamente, o homem científico enxergou o mundo material sob a lente da objetividade, numa realidade dada a priori, para a produção do conhecimento científico. Já aqueles saberes relativos e filosóficos foram ofuscados. O chamado cientista moderno segui sua produção atento aos critérios do fazer científico, a partir do método, neutralidade, generalização (Bacon, 1979; Descartes, 1979). Contudo, essa separação entre filosofia e ciência não contribuiu para resolução dos problemas do mundo, também conduziu o cientista a erguer muros ao invés de pontes para percepção de caminhos diferentes.

A industrialização e a urbanização são exemplos de fatos históricos da ciência moderna. O progresso da urbanização desenvolveu o centro de cidades, em detrimento da periferia. Tal reflexão pode ser uma analogia ao avanço (ou retrocesso) do espaço das ciências, desde o pensamento filosófico sobre o que é verdade, até o que é conhecimento científico. O processo de sistematização do fazer ciência, inicialmente, foi estabelecido pelas chamadas hard sciences (ciências duras), defendida por homens que acreditavam que todo saber não verificável era considerado não científico. Essa dicotomia, provocou a hierarquização da ciência (Kneller,1980) desvelando o poder do conhecimento, e uma constituição moderna (Latour,1994). Porém, essa lente ainda não permitia ao homem moderno resolver os problemas do mundo. 

Fonte: https://www.segs.com.br/demais/308944-com-mural-seja-luz-eduardo-kobra-instiga-a-repensar-valores-e-fazer-a-diferenca/amp

Enquanto isso, a crise ecológica revelava os efeitos das ciências na sociedade, principalmente, as ciências naturais. “A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte” (Latour,1994, p. 19). Em outras palavras, a proposição de modernidade não reconhecia a sociologia, tão pouco a soft sciences. Diante disso, em oposição, cientistas sociais reivindicam seu espaço com a demarcação científica, por meio do surgimento de diversas “visões de mundo” (epistemologias). Assim, iniciava a guerra das ciências (Latour, 1994). 

Todavia, tal confronto conduziu o cientista a erguer muros ao invés de pontes que viabilizem percepções diferentes de caminhos para resolução dos problemas do mundo. A epistemologia, foi difundida como o estudo do conhecimento a partir da intelectualidade do indivíduo, para formação de crenças verdadeiras, que resulte racionalidade ou justificação (Goldman, 2020). Cada epistemologia (ou percepções) segue um processo sistemático para produção de conhecimento científico, justificado por argumentos. Uma virtude importante do “argumento é a noção de autocrítica, essencial para a crítica: em geral, o que criticamos nos outros também nos serve (ou serve ainda mais para o crítico), sem falar que, sem autocrítica, toda crítica é ridícula” (Demo, 2012, p.122). Será que nós cientistas (críticos) estamos dispostos a autocrítica? 

O contraponto de Demo (2012), sobre a interrelação entre crítica e autocrítica, corrobora com o surgimento da epistemologia social contemporânea. A partir do movimento de crítica e autocritica a própria epistemologia, conduzido por precursores como Michel Foucault, Thomas Kuhn, Bruno Latour, Barry Barnes, David Bloor, Steven Shapin e Richard Rorty (Goldman, 2020; Henderson, 2020). Essa vertente da epistemologia “se preocupa com agentes epistêmicos coletivos, ou seja, equipes, júris, comitês, corporações e outros tipos de coletividades que podem ser plausivelmente vistos como agentes epistêmicos” (Goldman, 2020, p. 10 - 11). Ou seja, ao contrário da epistemologia tradicional, nessa vertente a episteme não envolve apenas o intelectualismo individual do cientista, mas demais agentes epistêmicos coletivos (Henderson, 2020). Como incluir esses agentes epistêmicos no processo de produção de conhecimento científico? 

Ampliando o debate, Kidd, Medina e Pohlhaus (2017) expõe a injustiça epistêmica que “se refere às formas de tratamento injusto que se relacionam a questões de conhecimento, compreensão e participação em práticas comunicativas” (Kidd; Medina; Pohlhaus, 2017, p. 1). Em outras palavras, a justiça epistêmica é urgente no processo de produção de conhecimento científico, também integra três ramos da filosofia: política, ética e epistemologia (Pohlhaus, 2017). A exemplo da complexidade desse debate, resgato um trecho da música, esquiva da esgrima, do rapper Criolo: “cada maloqueiro, tem um saber empírico” (Criolo, 2014), o termo maloqueiro se refere aquele sujeito que está a margem da sociedade, por vezes sem acesso ao “conhecimento” científico, porém detém um saber baseado na vivência cotidiana. A intelectual Djamila Ribeiro, uma das precursoras do feminismo negro no Brasil, corrobora com a injustiça epistêmica, principalmente pela hermenêutica, por meio do conceito de lugar de fala. “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas a poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (Ribeiro, 2019, p. 49). Como construir pontes para que existam lugares de fala? 

Por fim, a dicotomia entre ciência e epistemologia não contribui para resolução dos problemas do mundo, mas a união entre ambas. Ser humano é ser subversivo, também deter capacidade de agir sobre os próprios processos de vida e condições de existência (González Rey, 2019; Lima, 2021). A abertura e o acesso ao diálogo se tornam essências num movimento crítico e autocritico, pois, a ciência é uma atividade humana. Existe algo mais humano, do que a nossa habilidade de dialogar?

REFERÊNCIAS 

CRIOLO. Esquiva da esgrima. São Paulo: Oloko Records: 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-1cI4nYIQqs>. Acesso em: 1 set. 2024. 

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21.  

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.  

GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21. 

GONZÁLEZ REY, F.; MITJÁNS MARTÍNEZ, A.; GOULART, D. Subjectivity within cultural-historical approach. Perspectives in Cultural-Historical Research, v. 5, p. 3-19, 2019. 

GRECO, J. Introduction: What is Epistemology? The Blackwell Guide to Epistemology. Massachussets/Oxford: Blackwell Publishers Ltda, 1999, p. 1-33. 

KIDD, I.J; MEDINA, J.; POHLHAUS, Jr., G. (Edd) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, 2017. Introduction e Capítulo 1 – Varieties of Epistemic Injustice.  

LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 

LIMA, Jéssica Gomes. O processo de intervenção: o estudo sobre uma prática organizacional em prol da equidade de gênero em uma cooperativa de crédito. 

2021. 109 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Setor de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2021. 

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.  

Reflexões Críticas na Ciência

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Letícia Nunes Medeiros.

Criada em 1869, a revista britânica Nature se tornou uma das mais renomadas revistas científicas no mundo, abordando conteúdos de diferentes áreas e especialidades ao longo de seus mais de 150 anos de história. Em setembro de 2022, a revista publicou um editorial reconhecendo sua culpa na difusão de ideias eugenistas, elitistas, racistas e sexistas por meio de diversas publicações ao longo de sua história, as quais afetaram prejudicialmente não somente a ciência, mas também a sociedade como um todo.

Kneller (1980) na obra A Ciência como Atividade Humana, destaca que “se quisermos entender o que a Ciência realmente é, devemos considerá-la em primeiro lugar e acima de tudo como uma sucessão de movimentos dentro do movimento histórico mais amplo da própria civilização. Eu disse uma ‘sucessão de movimentos’ porque a História não revela uma Ciência mas numerosas ciências”. Ademais, Kneller também aponta que a ciência é intrinsecamente histórica, e que suas técnicas, tradições e instituições mudam de acordo com o mundo social e cultural que pertencem.



Sob essa perspectiva, a revista Nature em seu editorial intitulado “Como a Nature contribuiu para o legado discriminatório da ciência”, expõe que, apesar de uma reputação construída ao longo dos anos pela publicação de trabalhos científicos de grande relevância e qualidade, muitos de seus materiais contribuíram para o proconceito, a exclusão e a discriminação de grupos minoritários. Em 1904, por exemplo, a Nature publicou um discurso sobre eugenia produzido pelo estatístico Francis Galton, um dos principais cientistas da época. Em seu estudo, Galton definiu a eugenia como “a ciência que lida com todas as influências que melhoram e desenvolvem as qualidades de uma raça”.

Logo, é nítido que, mesmo que a ciência esteja diretamente relacionada com seus contextos históricos, sociais e culturais, conforme apresentado por Kneller (1980), é preciso realizar um recorte considerando que isso não a exime de críticas por contribuições vistas como prejudiciais para a humanidade, independentemente do fato de que elas estivessem ou não de acordo com o contexto histórico da época. Além disso, a revista também reconheceu que esse problema não foi somente em sua história mais antiga, como também esteve presente nos anos mais recentes, tendo publicado artigos ofensivos, criticados por serem excessivamente elitistas.

Nesse ínterim, a raiz de muitos problemas na ciência reside do fato de que os seres humanos tendem a admirar e exaltar as capacidades da mente humana exageradamente sem exercer o devido questionamento, enquanto o verdadeiro progresso não seria possível sem o fortalecimento da investigação científica com métodos e ferramentas apropriados (Bacon, 1979). Outrossim, Descartes (1979) também aborda em sua obra a importância de jamais acolher algo como verdadeiro antes de conhecê-lo evidentemente e profundamente, ou seja, buscar evitar a precipitação. Assim, ainda que, também de acordo com Bacon (1979), a ciência nada mais é do que combinações de descobertas anteriores, ela não é infalível e deve ser continuamente submetida a um exame crítico.

Dessa forma, conforme analisado no caso do editorial da Nature, a própria revista reconheceu que, ao longo de sua história, falhou em exercer o devido questionamento sobre algumas das ideias que veiculou, permitindo que conceitos como a eugenia ganhassem espaço e influência no discurso científico e social, não somente há décadas atrás, mas também em sua história recente. Esse caso é um exemplo claro de como a ciência, quando não acompanhada de uma análise crítica constante, pode perpetuar e até amplificar preconceitos e desigualdades.

 Por fim, é preciso ressaltar que a ciência, ainda que inerentemente histórica na medida em que tende a ser cumulativa (Kneller, 1980), não deve ser apenas um acúmulo de conhecimentos, mas também de garantir que esse conhecimento seja utilizado de maneira ética e responsável. Logo, a ciência carrega essa responsabilidade de refletir criticamente sobre suas descobertas e práticas, garantindo que seu impacto seja inclusivo, ao invés de reforçar desigualdades e preconceitos.

Referências Bibliográficas

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos).

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos) 

How Nature contributed to science's discriminatory legacy. Nature. 2022. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-022-03035-6. Acesso em: 16 ago. 2024. 

KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.

 

Demarcação científica: conceito possível ou utopia?

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Cinthia Coutinho Cezar. 

Conceituar ciência no campo da epistemologia é um processo desafiador à pesquisa. Demo (1985) defende ser mais fácil a definição do que não é característica da cientificidade. De acordo com o autor, não são elementos da cientificidade a ideologia e o senso comum, por exemplo. Contudo, Demo (1984) compreende que a ideologia e o senso comum são conceitos intrínsecos ao sujeito e ao objeto e, portanto, é impossível dissociá-los do conceito de ciência. É possível, então, demarcar o que se aproxima do conceito de ciência?

Notoriamente há complexidade nesta conceituação. Contudo, corroboro com a ideia de Demo (1985) no sentido de que só é possível considerar elementos de cientificidade quando há a presença do critério da discutibilidade. Em síntese, algo somente pode ser científico caso se mantenha discutível ao longo do tempo. A ciência se assemelha a um produto inacabado, que requer lapidação ad eternum.

Fonte: https://centroloyola.com.br/para-que-serve-a-utopia.html

Kneller (1980) explora a ciência na história e demonstra que diversas inquietações da humanidade foram propulsoras para o desenvolvimento de ciências como a matemática, a astronomia, a física, a filosofia e outras. Kneller (1980) dispõe que a finalidade da ciência é chegar a uma compreensão exata e abrangente da ordem da natureza- que, paradoxalmente, possui elementos infinitos- e, por conseguinte, compreende que a ciência é intrinsecamente histórica. É neste ponto que o conceito de ciência de Demo (1985) e de Kneller (1980) aproximam-se. Conforme Kneller (1980), para compreender o que a ciência realmente é, é preciso considerá-la acima de tudo como uma sucessão de movimentos dentro do movimento histórico mais amplo da própria civilização.

Tenhamos como exemplo deste movimento histórico o desenvolvimento da teoria da evolução, explicitada no estudo de Kneller (1980). A teoria da evolução, em seu estado da arte atual, foi desenvolvida por meio da unificação entre a teoria da evolução de Charles Darwin e a teoria genética de Gregor Mendel. Neste sentido, é possível perceber a complementaridade da ciência ao longo do tempo e o seu caráter discutível, conforme preconiza Demo (1985). Não há ciência finita, o cientista tem por missão refinar conhecimentos existentes ou produzir novos Kneller (1980).

A ciência, portanto, avança ao ampliar teorias, ao alterar seus pressupostos, a complementar tradições em pesquisa e a simplificar o conhecimento. Compreende-se, pois, que o cientista é o sujeito que promove um enfoque e uma perspectiva acerca de um objeto, mas precisa ter em mente que seu produto é inacabado e integra um movimento histórico.

Considerando o viés da discutibilidade da ciência e sua infinitude, qual o sentido, portanto, de sua promoção? Eduardo Galeano, ao citar o cineasta Fernando Birri, diz que “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: que eu não deixe de caminhar.”. Semelhante à utopia, a ciência é movimento e encontra-se no horizonte. A finalidade da ciência é justamente a busca insaciável pela solução das inquietudes da humanidade visando uma sociedade melhor. Afinal, conforme Bloch apud Demo (1985), toda sociedade existente traz em si a esperança de uma melhor.

Referências 

 DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 

 KNELLER. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29


Epistemologia: O Farol que Ilumina a Ciência

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Mariana Ribeiro Pires. 


Imagine a ciência como um veleiro navegando pelo vasto oceano do conhecimento. As águas são imprevisíveis, repletas de correntes de informações conflitantes e ondas de dúvidas. A epistemologia, aqui entendida como o estudo do saber de forma reflexiva e metódica1, parece surgir como um farol, iluminando o caminho, ajudando e orientando a ciência em sua jornada contínua de descoberta. Falar de epistemologia é falar de como o conhecimento é construído, e assim temos como a sua principal questão “como sabemos o que sabemos?2

Sob essa perspectiva, ao utilizarmos a ótica epistemológica e seus desdobramentos, podemos nos apoiar no conhecimento já construído e delimitado pela ciência, e assim aprofundar na temática.




Ao analisarmos a forma que o conhecimento é construído, podemos perceber diferentes concepções, dependendo da época histórica3 que foram concebidos e por qual corrente de pensamento estavam inseridos. John Greco em sua obra “The Blackwell Guide to Epistemology2 apresenta dezessete ensaios sobre temas centrais da epistemologia, cada um de um autor líder na área temática relevante, com o objetivo de tornar o conteúdo mais acessível. Na mesma maneira, buscou-se apresentar de forma sistemática neste short paper (assim como uma carta náutica) as informações já construídas de outros autores para nos guiarem no entendimento e melhor roteiro para o descobrimento das formas do conhecimento, servindo como um guia de consulta para aprofundamentos:

Problemas Tradicionais: - formulação tradicional - “Grandes Questões” da teoria do conhecimento.

Ceticismo

Michael Williams

Realismo, Objetividade e Ceticismo

Paul K. Moser

O que é conhecimento?

Linda Zagzebski

Fundacionalismo e Coerentismo

Laurence BonJour

Natureza da Avaliação Epistêmica: diferentes aspectos da questão "O que é Conhecimento?" - examinam mais de perto várias dimensões da normatividade epistêmica, ou o tipo de normatividade relevante para a cognição

Internalismo e Externalismo

Ernest Sosa


Epistemologia Naturalizada

Hilary Kornblith

Contra a epistemologia naturalizada

Richard Feldman

Contextualismo

Keith DeRose

Racionalidade

Keith Lehrer

Variedades de Conhecimento: “O que podemos saber?”-      possibilidade de conhecimento perceptivo, conhecimento a priori, conhecimento moral e conhecimento religioso

Conhecimento Perceptivo

William Alston

Um conhecimento a priori

George Bealer

Conhecimento Moral e Pluralismo Ético

Robert Audi

Epistemologia da Religião

Nicholas Wolterstorff

Novas direções: algumas tendências recentes na epistemologia

Epistemologia Feminista

Helen E. Longino

Epistemologia Social

Frederick Schmitt

Epistemologia e Inteligência Artificial

John L. Pollock

Pós-modernismo      e       epistemologia                                  no continente

Merold Westphal


Apesar de vasto o conteúdo sistematizado na tabela acima, ele não se esgota quando tratamos da conceitualização de epistemologia e suas relações. Jassipau1, por exemplo, apresenta cinco conceitos distintos ao tratar de epistemologia: global (geral), que se refere ao saber considerado globalmente, abordando a virtualidade e os problemas inerentes à organização desse conhecimento, tanto em termos especulativos quanto científicos; particular, que se concentra em um campo específico do saber, seja ele especulativo ou científico; específica, que analisa disciplinas intelectualmente construídas com unidades bem definidas de saber; interna, que realiza uma análise crítica dos procedimentos de conhecimento utilizados em uma disciplina, com o objetivo de estabelecer seus fundamentos e por fim a derivada, que diferentemente da interna, visa analisar a natureza dos procedimentos de conhecimento de uma ciência não para fornecer-lhe um fundamento, mas para compreender sua essência.

Em síntese, a epistemologia nos convida e nos mostra como vieram e as formas de navegar entre as profundezas do conhecimento, passando por oceanos nem sempre facilmente navegáveis, e até mesmo por desconhecidas correntes intelectuais. Nem sempre o marinheiro tem certeza do rumo que deve seguir será a boreste ou bombordo, e pode estar aí a graça e da navegação e o que o levará a novas descobertas.


1 JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.

2 GRECO, J. Introduction: What is Epistemology? The Blackwell Guide to Epistemology. Massachussets/Oxford: Blackwell Publishers Ltda, 1999, p. 1-33

3 TSOUKAS, H. & CHIA, Introduction: Why philosophy matters to organization theory? In: TSOUKAS, H. & CHIA, Philosophy and Organizational Theory. Bingley: Esmerald. 2011, p. 1-22.

Podemos pensar com a cabeça da terra?

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmica Amanda Marina Lima Batista.  

O livro A Ciência como Atividade Humana, de Kneller (1978) chama atenção ao associar os esforços dos primeiros cientistas que investigaram a natureza às emoções de medo e assombro. Nessa perspectiva, a finalidade da ciência seria descobrir as causas de “terremotos, inundações, incêndios e doenças” (p. 11) para ter mais segurança perante esses fenômenos. A ideia expressa por Kneller vai ao encontro das reflexões de Epicuro, segundo o qual “se não fôssemos perturbados por nosso fracasso em perceber os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade alguma de estudar a natureza” (p. 12). Quando as investigações científicas começaram a perceber que a Natureza é ordenada e inteligível, o medo deu lugar ao assombro diante da possibilidade de dominar o mundo por meio da Ciência. 


Fonte: https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/818/bem-viver-um-ideal-para-a-amazonia

Ao longo do estudo são apresentas as ciências que se desenvolveram na China, na Grécia clássica, no Islã e na Europa medieval. A tradição científica ocidental, apesar de ser mais recente em termos históricos, foi a que mais se aproximou de uma representação fidedigna da Natureza por meio de modelos matemáticos a partir de Galileu e da teoria mecanicista. O autor associa a ciência ocidental europeia também a condições históricas como a Reforma, a ContraReforma e a Renascença, uma verdadeira revolução do pensamento da época, sendo Francis Bacon e René Descartes pensadores desse período. A expansão marítima (séc. XV-XVII), que representa a semente de nosso atual mundo globalizado, foi intensificada pela Revolução Científica iniciada no século XVI. 

Na compilação “Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem” (1620), é possível perceber o medo mencionado por Kneller. Logo na primeira reflexão, Bacon reconhece a imponência da Natureza ao mesmo tempo que a coloca como um oponente contra o qual o intelecto humano “não sabe nem pode mais” (p. 05). O filósofo empirista reconhece a mente humana como limitada e afirma que as descobertas científicas até o momento se deviam mais ao acaso do que de a uma ação sistemática da ciência. 

Diante disso, percebeu a necessidade de um novo método, que fosse além da observação, para ampliar o alcance de nosso próprio intelecto e da prática científica. De acordo com os registros históricos que se tem acesso, antes não havia a sistematização do conhecimento que levaria à experimentação e à reprodutibilidade que hoje são fundamentos da ciência. A obra de Bacon representou uma peça fundamental para que a ciência europeia se destacasse em relação às demais. Entretanto, cabe salientar que, na concepção de Crombie, havia na ciência medieval (séc. XIII-XIV) a essência do que tornaria o método experimental no século XVII (Koyré, 2011, p. 56-57). 

Outro estudo basilar para a trajetória ascendente do conhecimento europeu foi “O discurso do método” (1637) de Descartes, que tem como inspiração a matemática. O autor propôs uma forma de organizar o pensamento que conduzisse à verdade e superasse as convicções pessoais, fragmentando o objeto analisado para melhor resolvê-lo e indo do mais simples ao mais complexo. A busca pela verdade continua sendo o propósito científico, com a diferença de que a figura de um pensador fechado em um quarto bem aquecido para se entreter com as próprias reflexões deu lugar a uma comunidade científica que dialoga e constrói coletivamente o conhecimento. De modo análogo, o método de divisão do objeto de investigação para melhor compreendê-lo, ainda é pertinente nas ciências naturais, mas seu uso para as ciências humanas e sociais, nem sempre é o mais adequado. 

Com o capitalismo, a ciência europeia se universalizou, tornando-se referência em termos de método e de visão de mundo capaz de levar ao progresso por meio do aprimoramento técnico. No entanto, Kneller salienta que não há consenso de que o avanço científico dependa de uma classe mercantil conquistar poder político. Mesmo não sendo uma condição necessária, foi assim que a ciência europeia se tornou predominante. 

Na atualidade assombro identificado por Kneller a respeito dos rumos que a humanidade teria a partir da Revolução Científica, pode ser considerado um presságio da insegurança ambiental que experimentamos agora. Na concepção de Bacon, a Natureza era comparada a um prisioneiro que deveria ser torturado para revelar seus segredos mais íntimos (Boff, 2012). A racionalidade contemporânea ainda é atravessada por essa mesma ideia de dominação sobre os ecossistemas naturais de forma patriarcal e voraz (Shiva, 2015). 

Da mesma forma, a noção de “recursos naturais” coloca os biomas à disposição dos desejos humanos, que atualmente vão muito além das necessidades e movimentam a economia mundial rumo à acumulação e à desigualdade. Se no passado a ciência foi impulsionada pelo medo de uma natureza considerada hostil, implacável e perigosa, agora o aprimoramento técnico utilizado em uma lógica de obtenção de valor econômico a partir da degradação do mundo físico é que assombram a Natureza e nossa permanência enquanto espécie. 

É possível perceber que a visão da Natureza como uma ameaça das quais partiram as nações europeias possui relação com o clima da região, com invernos rigorosos, maior propensão a terremotos e tempestades que levavam à escassez inclusive de alimentos. Esse contexto impulsionou um aprimoramento técnico baseado no medo das condições daquela região. Porém, ao expandir suas fronteiras a partir das granes navegações, a nação europeia proclamou a si mesma como referencial de evolução e modelo de civilização. A técnica se uniu à colonização e levou aos desdobramentos históricos que se conhece. 

Seguindo a associação histórica do surgimento da ciência para lidar com as intempéries, é plausível que em continentes como a América Latina, não se poderia falar em ciência nos moldes europeus, o que é diferente de afirmar que não há conhecimento. Com um clima favorável, uma diversidade imensa e exuberante não há com a Natureza uma relação de medo, mas sim uma relação de afeto. A disputa por recursos escassos e a necessidade de acumulação que motivou os povos europeus não era um fator presente nesse lado do hemisfério. 

De acordo com Ailton Krenak, a palavra Natureza, sequer existe no vocabulário indígena. Há a Terra e os povos originários são parte dela. O nome Krenak, uma das etnias indígenas do Brasil, significa em sua etimologia, cabeça (kre) da terra (nak). Se atualmente vivemos a chamada era do Antropoceno (Artaxo, 2014) - época geológica caracterizada pelo impacto humano na Terra a partir da Revolução Industrial - ao ponto de falarmos em emergência climática, poderia a ciência europeia entrar em contato com os conhecimentos de povos que possuem afeto pela Terra para tecer uma ciência regenerativa? 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ARTAXO, Paulo. Uma nova era geológica em nosso planeta: o Antropoceno?. Revista Usp, n. 103, p. 13-24, 2014. 

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos) 

BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é-o que não é. Editora Vozes Limitada, 2017. 

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos) 

KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29 

KRENAK, Ailton. Pensando com a cabeça na Terra. Anais da ReACT-Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia, v. 3, n. 3, 2017. 

SHIVA, Vandana. Earth democracy: Justice, sustainability, and peace. North Atlantic Books, 2015.