Reflexões Críticas na Ciência

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Letícia Nunes Medeiros.

Criada em 1869, a revista britânica Nature se tornou uma das mais renomadas revistas científicas no mundo, abordando conteúdos de diferentes áreas e especialidades ao longo de seus mais de 150 anos de história. Em setembro de 2022, a revista publicou um editorial reconhecendo sua culpa na difusão de ideias eugenistas, elitistas, racistas e sexistas por meio de diversas publicações ao longo de sua história, as quais afetaram prejudicialmente não somente a ciência, mas também a sociedade como um todo.

Kneller (1980) na obra A Ciência como Atividade Humana, destaca que “se quisermos entender o que a Ciência realmente é, devemos considerá-la em primeiro lugar e acima de tudo como uma sucessão de movimentos dentro do movimento histórico mais amplo da própria civilização. Eu disse uma ‘sucessão de movimentos’ porque a História não revela uma Ciência mas numerosas ciências”. Ademais, Kneller também aponta que a ciência é intrinsecamente histórica, e que suas técnicas, tradições e instituições mudam de acordo com o mundo social e cultural que pertencem.



Sob essa perspectiva, a revista Nature em seu editorial intitulado “Como a Nature contribuiu para o legado discriminatório da ciência”, expõe que, apesar de uma reputação construída ao longo dos anos pela publicação de trabalhos científicos de grande relevância e qualidade, muitos de seus materiais contribuíram para o proconceito, a exclusão e a discriminação de grupos minoritários. Em 1904, por exemplo, a Nature publicou um discurso sobre eugenia produzido pelo estatístico Francis Galton, um dos principais cientistas da época. Em seu estudo, Galton definiu a eugenia como “a ciência que lida com todas as influências que melhoram e desenvolvem as qualidades de uma raça”.

Logo, é nítido que, mesmo que a ciência esteja diretamente relacionada com seus contextos históricos, sociais e culturais, conforme apresentado por Kneller (1980), é preciso realizar um recorte considerando que isso não a exime de críticas por contribuições vistas como prejudiciais para a humanidade, independentemente do fato de que elas estivessem ou não de acordo com o contexto histórico da época. Além disso, a revista também reconheceu que esse problema não foi somente em sua história mais antiga, como também esteve presente nos anos mais recentes, tendo publicado artigos ofensivos, criticados por serem excessivamente elitistas.

Nesse ínterim, a raiz de muitos problemas na ciência reside do fato de que os seres humanos tendem a admirar e exaltar as capacidades da mente humana exageradamente sem exercer o devido questionamento, enquanto o verdadeiro progresso não seria possível sem o fortalecimento da investigação científica com métodos e ferramentas apropriados (Bacon, 1979). Outrossim, Descartes (1979) também aborda em sua obra a importância de jamais acolher algo como verdadeiro antes de conhecê-lo evidentemente e profundamente, ou seja, buscar evitar a precipitação. Assim, ainda que, também de acordo com Bacon (1979), a ciência nada mais é do que combinações de descobertas anteriores, ela não é infalível e deve ser continuamente submetida a um exame crítico.

Dessa forma, conforme analisado no caso do editorial da Nature, a própria revista reconheceu que, ao longo de sua história, falhou em exercer o devido questionamento sobre algumas das ideias que veiculou, permitindo que conceitos como a eugenia ganhassem espaço e influência no discurso científico e social, não somente há décadas atrás, mas também em sua história recente. Esse caso é um exemplo claro de como a ciência, quando não acompanhada de uma análise crítica constante, pode perpetuar e até amplificar preconceitos e desigualdades.

 Por fim, é preciso ressaltar que a ciência, ainda que inerentemente histórica na medida em que tende a ser cumulativa (Kneller, 1980), não deve ser apenas um acúmulo de conhecimentos, mas também de garantir que esse conhecimento seja utilizado de maneira ética e responsável. Logo, a ciência carrega essa responsabilidade de refletir criticamente sobre suas descobertas e práticas, garantindo que seu impacto seja inclusivo, ao invés de reforçar desigualdades e preconceitos.

Referências Bibliográficas

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos).

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos) 

How Nature contributed to science's discriminatory legacy. Nature. 2022. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-022-03035-6. Acesso em: 16 ago. 2024. 

KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário