Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maria Luíza Lauxen Della Valle.
O contexto urbano é resultado do cruzamento de fatores econômicos, migratórios, sociais, culturais, entre outros. As perspectivas sociológicas acerca do fenômeno divergem entre compreendê-lo por sua interdependência ou autonomia em relação ao industrialismo, desenvolvimento econômico e monetário e ao capitalismo moderno (Wirth, 1967; Simmel, 1997). No entanto, as influências da modernidade nos modos de vida urbanos são inegáveis. A atual sociedade em rede, fruto da revolução tecnológica, tecnologias digitais, comunicação e transporte (Pinheiro; Castells, 1999), também é palco da homogeneização dos espaços, práticas e valores, onde a transmissão de informações e conhecimento, tem papel essencial para o fortalecimento de estruturas sociais e exercício de poder. Nesse contexto o “ser” pensante urbano deve adaptar-se a diminuição de barreiras espaciais, volatilidades dos processos e aceleração da vida urbana, de maneira que o “alcance e os limites da razão”(Revista Mente, Cérebro e Filosofia, 2005) passam a ser subordinadas à efemeridade e perda de referências espaciais e temporais.
O contexto e perspectiva apresentada são referenciais para o estudo da sociologia urbana, provenientes da escola sociológica de Chicago. As noções de aceleração e velocidade de fluxos e tempo no contexto moderno, propostas por Simmel, que representam a ruptura entre o espaçotempo e os sentimentos “...de instabilidade e de mudança permanente, intensificando a incerteza e a angústia” (Gomes, 2018; Haroche, 2014, p. 99), dialogam com as condições sensíveis do conhecimento e entendimento propostas por Immanuel Kant.
Immanuel Kant, filósofo influenciado por Descartes (1596-1650) e Hume (1711-1776), reúne a elementos do empirismo e racionalismo para propor uma ”metafísica sólida fundada rigorosamente como ciência, que há-de desenvolver-se de maneira necessariamente dogmática e estritamente sistemática, por conseguinte escolástica (e não popular)” (Kant, 2015, p.40), com fins no saber dos princípios que tornam possível todo o conhecimento, bem como suas limitações e condições.
É na obra “A Crítica da Razão Pura” (1781), livro que divide o período Pré-Crítico e Crítico de Kant, que o mesmo realiza análises e proposições para as condições do saber. Esta, é marcada pela Metafísica Crítica, diferenciando-se da tradicional por ser o próprio objeto de investigação crítica da razão, e do Idealismo Transcendental, filosofia que passa a conferir primazia ao sujeito e no modo de conhecer do mesmo, no lugar do objeto. O mesmo propõe que a única forma de conhecer a realidade é como lhe aparece, e não como realmente é, a partir das intuições/percepções: "o objeto dos sentidos se regula pela nossa faculdade de intuição" (Kant, 2015 p.30). É evidente as heranças de Kant dos empiristas, perante a adoção da noção de que todo conhecimento começa com a experiência, mas não surge apenas da experiência. O mesmo sugere que os conhecimentos podem surgir de fontes a posteriori, como a experiência, e fontes a priori, sendo aquelas que se dão independentes “de toda e qualquer experiência”, como a razão pura- momento onde ele se aproxima do racionalismo.
Neste short paper volta-se olhares às condições a priori do saber, analisados por Kant, como Juízo a priori, Número e Fenômeno, Formas de entendimento (superior) e Formas de sensibilidade (inferior), sendo este último o objeto deste argumento. Como mencionado, Kant assume que conhecemos as coisas de forma a priori de acordo com nossas percepções e intuições, seguido de nosso entendimento e conceitos. As coisas como são, são identificadas como Número, e as coisas como percebemos, identificadas como Fenômenos. Os Fenômenos são as percepções fruto das sensações, sendo organizadas pelas formas a priori de sensibilidade- Tempo e Espaço. Estes, não são conceitos empíricos mas faculdades cognitivas e intuitivas, estritamente necessárias para qualquer percepção.
As condições para o saber atribuídas às faculdades cognitivas intuitivas da sensibilidade pelo filósofo alemão encontram obstáculos quando analisadas sob o modo e os produtos da vida urbana, onde o Espaço e o Tempo influenciam fortemente as percepções das coisas. Sérgio Ricardo Gomes, doutor em sociologia pela Universidade Federal do Sergipe reflete sobre as formas do juízo e de conhecer na metrópole:
“a proteção do intelecto se esfarela perante a avalanche de imagens, signos, símbolos e ideias produzidas em uma velocidade indecodificável … processo asfixiante de racionalização do tempo e do espaço que deteriora qualquer possibilidade de construção de referências. As repercussões psicológicas e sociais desses fenômenos alcançam todo o mundo, pois sua sede é a vida urbana, e hoje o mundo é urbano.” (Gomes, 2018, p.64)
Ainda, quando analisadas as repercussões psicológicas da aceleração e velocidade do Espaço e Tempo da modernidade, os obstáculos são intensificados, visto os crescentes graus de impessoalidade, individualidade, indiferença e fadiga dos indivíduos. Este fenômeno, é conceituado por por Simmel como atitude blasé- oriunda de motivos fisiológicos, como a maximização de estímulos nervosos que torna os indivíduos incapazes de sentir novas sensações, e econômica, por meio do “ embotamento do poder de discriminar” (Simmel, 1976, p. 16), tornando as coisas opacas e distantes, onde o dinheiro torna-se referencial e denominador comum (Tardelli, 2016).
Entende-se que a perspectiva sociológica das condições de sensibilidade, Espaço e Tempo, diferencia-se da de Kant, as quais têm independência ao mundo externo e experiência humana, visto que os modos de vida urbano estão intrinsecamente ligados aos seus acessos, usos, significados, etc. No entanto, a Metafísica Crítica e o fenômeno sociológico se aproximam ao reconhecer o sujeito e seus modos de conhecer como centrais para a percepção das coisas, onde Números, de acordo com as sensações provenientes do Tempo e Espaço, tornam-se Fenômenos.
A partir da reflexão realizada, e da constatação de que as faculdades cognitivas humanas não têm capacidade de responder plenamente aos fluxos atuais, levantam-se questões acerca de que maneira então, “determinar o alcance e os limites da razão a partir do exame dos elementos que a constituem”(Revista Mente, Cérebro e Filosofia, 2005)? Seria necessário para obtenção do conhecimento uma mudança nos modos de vida? Ou rever as Formas de Entendimento Kantianas para o ordenamento dos dados das percepções persuadidas? Ou ainda, para além de reconhecer que não é possível conhecer a realidade das coisas, estas são substancialmente subjetivas e influenciam diretamente a forma como nos relacionamos?
Referências:
WIRTH, L. 1967 [1938]. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro.
SIMMEL, G. (1997). A metrópole e a vida do espírito. In: FORTUNA, C. (org.). Cidade, cultura e globalização: ensaios de sociologia. Oeiras: Celta, 33-45 [1903].
HAROCHE,C. Avida mental nas grandes cidades contemporâneas diante da aceleração e do ilimitado. In: PECHMAN, R. M. (Org). A pretexto de Simmel: cultura e subjetividade na metrópole contemporânea. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In. VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68. Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17
GOMES,Sérgio Ricardo. Formas de subjetivação nas grandes cidades: modo de vida urbano em George Simmel e Louis Wirth. Praça: Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. V 2 n. 1 (2018).Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/praca/issue/view/2686
TARDELLI, Gabriel. A Cidade como problema sociológico: diálogo com Georg Simmel e Louis Wirth. Revista eletrônica e-metropolis. Ed. 27 (2017). Disponível em: http://emetropolis.net/system/artigos/arquivo_pdfs/000/000/203/original/emetropolis27_art2.pdf? 1485999160
PINHEIRO, E. G. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1. Informação & Sociedade, [S. l.], v. 10, n. 2, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/337. Acesso em: 11 set. 2024
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