Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Jéssica Gomes Lima.
Historicamente, o homem científico enxergou o mundo material sob a lente da objetividade, numa realidade dada a priori, para a produção do conhecimento científico. Já aqueles saberes relativos e filosóficos foram ofuscados. O chamado cientista moderno segui sua produção atento aos critérios do fazer científico, a partir do método, neutralidade, generalização (Bacon, 1979; Descartes, 1979). Contudo, essa separação entre filosofia e ciência não contribuiu para resolução dos problemas do mundo, também conduziu o cientista a erguer muros ao invés de pontes para percepção de caminhos diferentes.
A industrialização e a urbanização são exemplos de fatos históricos da ciência moderna. O progresso da urbanização desenvolveu o centro de cidades, em detrimento da periferia. Tal reflexão pode ser uma analogia ao avanço (ou retrocesso) do espaço das ciências, desde o pensamento filosófico sobre o que é verdade, até o que é conhecimento científico. O processo de sistematização do fazer ciência, inicialmente, foi estabelecido pelas chamadas hard sciences (ciências duras), defendida por homens que acreditavam que todo saber não verificável era considerado não científico. Essa dicotomia, provocou a hierarquização da ciência (Kneller,1980) desvelando o poder do conhecimento, e uma constituição moderna (Latour,1994). Porém, essa lente ainda não permitia ao homem moderno resolver os problemas do mundo.
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Fonte: https://www.segs.com.br/demais/308944-com-mural-seja-luz-eduardo-kobra-instiga-a-repensar-valores-e-fazer-a-diferenca/amp |
Enquanto isso, a crise ecológica revelava os efeitos das ciências na sociedade, principalmente, as ciências naturais. “A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte” (Latour,1994, p. 19). Em outras palavras, a proposição de modernidade não reconhecia a sociologia, tão pouco a soft sciences. Diante disso, em oposição, cientistas sociais reivindicam seu espaço com a demarcação científica, por meio do surgimento de diversas “visões de mundo” (epistemologias). Assim, iniciava a guerra das ciências (Latour, 1994).
Todavia, tal confronto conduziu o cientista a erguer muros ao invés de pontes que viabilizem percepções diferentes de caminhos para resolução dos problemas do mundo. A epistemologia, foi difundida como o estudo do conhecimento a partir da intelectualidade do indivíduo, para formação de crenças verdadeiras, que resulte racionalidade ou justificação (Goldman, 2020). Cada epistemologia (ou percepções) segue um processo sistemático para produção de conhecimento científico, justificado por argumentos. Uma virtude importante do “argumento é a noção de autocrítica, essencial para a crítica: em geral, o que criticamos nos outros também nos serve (ou serve ainda mais para o crítico), sem falar que, sem autocrítica, toda crítica é ridícula” (Demo, 2012, p.122). Será que nós cientistas (críticos) estamos dispostos a autocrítica?
O contraponto de Demo (2012), sobre a interrelação entre crítica e autocrítica, corrobora com o surgimento da epistemologia social contemporânea. A partir do movimento de crítica e autocritica a própria epistemologia, conduzido por precursores como Michel Foucault, Thomas Kuhn, Bruno Latour, Barry Barnes, David Bloor, Steven Shapin e Richard Rorty (Goldman, 2020; Henderson, 2020). Essa vertente da epistemologia “se preocupa com agentes epistêmicos coletivos, ou seja, equipes, júris, comitês, corporações e outros tipos de coletividades que podem ser plausivelmente vistos como agentes epistêmicos” (Goldman, 2020, p. 10 - 11). Ou seja, ao contrário da epistemologia tradicional, nessa vertente a episteme não envolve apenas o intelectualismo individual do cientista, mas demais agentes epistêmicos coletivos (Henderson, 2020). Como incluir esses agentes epistêmicos no processo de produção de conhecimento científico?
Ampliando o debate, Kidd, Medina e Pohlhaus (2017) expõe a injustiça epistêmica que “se refere às formas de tratamento injusto que se relacionam a questões de conhecimento, compreensão e participação em práticas comunicativas” (Kidd; Medina; Pohlhaus, 2017, p. 1). Em outras palavras, a justiça epistêmica é urgente no processo de produção de conhecimento científico, também integra três ramos da filosofia: política, ética e epistemologia (Pohlhaus, 2017). A exemplo da complexidade desse debate, resgato um trecho da música, esquiva da esgrima, do rapper Criolo: “cada maloqueiro, tem um saber empírico” (Criolo, 2014), o termo maloqueiro se refere aquele sujeito que está a margem da sociedade, por vezes sem acesso ao “conhecimento” científico, porém detém um saber baseado na vivência cotidiana. A intelectual Djamila Ribeiro, uma das precursoras do feminismo negro no Brasil, corrobora com a injustiça epistêmica, principalmente pela hermenêutica, por meio do conceito de lugar de fala. “O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas a poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (Ribeiro, 2019, p. 49). Como construir pontes para que existam lugares de fala?
Por fim, a dicotomia entre ciência e epistemologia não contribui para resolução dos problemas do mundo, mas a união entre ambas. Ser humano é ser subversivo, também deter capacidade de agir sobre os próprios processos de vida e condições de existência (González Rey, 2019; Lima, 2021). A abertura e o acesso ao diálogo se tornam essências num movimento crítico e autocritico, pois, a ciência é uma atividade humana. Existe algo mais humano, do que a nossa habilidade de dialogar?
REFERÊNCIAS
CRIOLO. Esquiva da esgrima. São Paulo: Oloko Records: 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-1cI4nYIQqs>. Acesso em: 1 set. 2024.
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GOLDMAN, A. The What, Why, and How of Social Epistemology. In: Fricker, M; Graham, P.J; Henderson, D. & Pedersen, N.J.L.L The Routledge Handbook of Social Epistemology. New York, Routledge Taylor & Francis, 2020, p. 10-21.
GONZÁLEZ REY, F.; MITJÁNS MARTÍNEZ, A.; GOULART, D. Subjectivity within cultural-historical approach. Perspectives in Cultural-Historical Research, v. 5, p. 3-19, 2019.
GRECO, J. Introduction: What is Epistemology? The Blackwell Guide to Epistemology. Massachussets/Oxford: Blackwell Publishers Ltda, 1999, p. 1-33.
KIDD, I.J; MEDINA, J.; POHLHAUS, Jr., G. (Edd) The Routledge Handbook of Epistemic Injustice, 2017. Introduction e Capítulo 1 – Varieties of Epistemic Injustice.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LIMA, Jéssica Gomes. O processo de intervenção: o estudo sobre uma prática organizacional em prol da equidade de gênero em uma cooperativa de crédito.
2021. 109 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Setor de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2021.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.
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