Pequeno ensaio produzido pelo acadêmica Amanda Marina Lima Batista.
O livro A Ciência como Atividade Humana, de Kneller (1978) chama atenção ao associar os esforços dos primeiros cientistas que investigaram a natureza às emoções de medo e assombro. Nessa perspectiva, a finalidade da ciência seria descobrir as causas de “terremotos, inundações, incêndios e doenças” (p. 11) para ter mais segurança perante esses fenômenos. A ideia expressa por Kneller vai ao encontro das reflexões de Epicuro, segundo o qual “se não fôssemos perturbados por nosso fracasso em perceber os limites das dores e dos desejos, não teríamos necessidade alguma de estudar a natureza” (p. 12). Quando as investigações científicas começaram a perceber que a Natureza é ordenada e inteligível, o medo deu lugar ao assombro diante da possibilidade de dominar o mundo por meio da Ciência.
Fonte: https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/818/bem-viver-um-ideal-para-a-amazonia |
Ao longo do estudo são apresentas as ciências que se desenvolveram na China, na Grécia clássica, no Islã e na Europa medieval. A tradição científica ocidental, apesar de ser mais recente em termos históricos, foi a que mais se aproximou de uma representação fidedigna da Natureza por meio de modelos matemáticos a partir de Galileu e da teoria mecanicista. O autor associa a ciência ocidental europeia também a condições históricas como a Reforma, a ContraReforma e a Renascença, uma verdadeira revolução do pensamento da época, sendo Francis Bacon e René Descartes pensadores desse período. A expansão marítima (séc. XV-XVII), que representa a semente de nosso atual mundo globalizado, foi intensificada pela Revolução Científica iniciada no século XVI.
Na compilação “Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem” (1620), é possível perceber o medo mencionado por Kneller. Logo na primeira reflexão, Bacon reconhece a imponência da Natureza ao mesmo tempo que a coloca como um oponente contra o qual o intelecto humano “não sabe nem pode mais” (p. 05). O filósofo empirista reconhece a mente humana como limitada e afirma que as descobertas científicas até o momento se deviam mais ao acaso do que de a uma ação sistemática da ciência.
Diante disso, percebeu a necessidade de um novo método, que fosse além da observação, para ampliar o alcance de nosso próprio intelecto e da prática científica. De acordo com os registros históricos que se tem acesso, antes não havia a sistematização do conhecimento que levaria à experimentação e à reprodutibilidade que hoje são fundamentos da ciência. A obra de Bacon representou uma peça fundamental para que a ciência europeia se destacasse em relação às demais. Entretanto, cabe salientar que, na concepção de Crombie, havia na ciência medieval (séc. XIII-XIV) a essência do que tornaria o método experimental no século XVII (Koyré, 2011, p. 56-57).
Outro estudo basilar para a trajetória ascendente do conhecimento europeu foi “O discurso do método” (1637) de Descartes, que tem como inspiração a matemática. O autor propôs uma forma de organizar o pensamento que conduzisse à verdade e superasse as convicções pessoais, fragmentando o objeto analisado para melhor resolvê-lo e indo do mais simples ao mais complexo. A busca pela verdade continua sendo o propósito científico, com a diferença de que a figura de um pensador fechado em um quarto bem aquecido para se entreter com as próprias reflexões deu lugar a uma comunidade científica que dialoga e constrói coletivamente o conhecimento. De modo análogo, o método de divisão do objeto de investigação para melhor compreendê-lo, ainda é pertinente nas ciências naturais, mas seu uso para as ciências humanas e sociais, nem sempre é o mais adequado.
Com o capitalismo, a ciência europeia se universalizou, tornando-se referência em termos de método e de visão de mundo capaz de levar ao progresso por meio do aprimoramento técnico. No entanto, Kneller salienta que não há consenso de que o avanço científico dependa de uma classe mercantil conquistar poder político. Mesmo não sendo uma condição necessária, foi assim que a ciência europeia se tornou predominante.
Na atualidade assombro identificado por Kneller a respeito dos rumos que a humanidade teria a partir da Revolução Científica, pode ser considerado um presságio da insegurança ambiental que experimentamos agora. Na concepção de Bacon, a Natureza era comparada a um prisioneiro que deveria ser torturado para revelar seus segredos mais íntimos (Boff, 2012). A racionalidade contemporânea ainda é atravessada por essa mesma ideia de dominação sobre os ecossistemas naturais de forma patriarcal e voraz (Shiva, 2015).
Da mesma forma, a noção de “recursos naturais” coloca os biomas à disposição dos desejos humanos, que atualmente vão muito além das necessidades e movimentam a economia mundial rumo à acumulação e à desigualdade. Se no passado a ciência foi impulsionada pelo medo de uma natureza considerada hostil, implacável e perigosa, agora o aprimoramento técnico utilizado em uma lógica de obtenção de valor econômico a partir da degradação do mundo físico é que assombram a Natureza e nossa permanência enquanto espécie.
É possível perceber que a visão da Natureza como uma ameaça das quais partiram as nações europeias possui relação com o clima da região, com invernos rigorosos, maior propensão a terremotos e tempestades que levavam à escassez inclusive de alimentos. Esse contexto impulsionou um aprimoramento técnico baseado no medo das condições daquela região. Porém, ao expandir suas fronteiras a partir das granes navegações, a nação europeia proclamou a si mesma como referencial de evolução e modelo de civilização. A técnica se uniu à colonização e levou aos desdobramentos históricos que se conhece.
Seguindo a associação histórica do surgimento da ciência para lidar com as intempéries, é plausível que em continentes como a América Latina, não se poderia falar em ciência nos moldes europeus, o que é diferente de afirmar que não há conhecimento. Com um clima favorável, uma diversidade imensa e exuberante não há com a Natureza uma relação de medo, mas sim uma relação de afeto. A disputa por recursos escassos e a necessidade de acumulação que motivou os povos europeus não era um fator presente nesse lado do hemisfério.
De acordo com Ailton Krenak, a palavra Natureza, sequer existe no vocabulário indígena. Há a Terra e os povos originários são parte dela. O nome Krenak, uma das etnias indígenas do Brasil, significa em sua etimologia, cabeça (kre) da terra (nak). Se atualmente vivemos a chamada era do Antropoceno (Artaxo, 2014) - época geológica caracterizada pelo impacto humano na Terra a partir da Revolução Industrial - ao ponto de falarmos em emergência climática, poderia a ciência europeia entrar em contato com os conhecimentos de povos que possuem afeto pela Terra para tecer uma ciência regenerativa?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARTAXO, Paulo. Uma nova era geológica em nosso planeta: o Antropoceno?. Revista Usp, n. 103, p. 13-24, 2014.
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos)
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é-o que não é. Editora Vozes Limitada, 2017.
DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos)
KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29
KRENAK, Ailton. Pensando com a cabeça na Terra. Anais da ReACT-Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia, v. 3, n. 3, 2017.
SHIVA, Vandana. Earth democracy: Justice, sustainability, and peace. North Atlantic Books, 2015.
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