Demarcar a ciência me parece algo natural em uma sociedade
que gosta de demarcar as coisas. Quanto mais limites criamos para alguns
campos, mais controle podemos exercer sobre eles. Mais barreiras podemos criar
para que novatos adentrem nos mesmos. Mais status pode-se atribuir a quem tem o
êxito de estar circunscrito a algo tão bem demarcado e difícil de pertencer.
Mas nada disso precisa ser necessariamente negativo, como minhas palavras
anteriores tendem a apontar, propositalmente. Ter limites, controle, barreiras
e critérios pode servir para dar mais legitimidade, processualização e
organização a determinado conceito, atividade ou grupo de pessoas. Eu gosto da
demarcação e meu argumento é que dela precisamos. Ao longo do meu escrito tal
argumento se tornará mais sólido.
A cada linha lida de Demo (1985) nos sentimos provocados.
Posso não ter compreendido ainda tudo que li, mas entendi o suficiente para
dizer que, sem dúvida, trata-se de uma leitura fundamental na trajetória do
pesquisador. Assim como eu, ele entende que a realidade nunca será
suficientemente estudada, sendo o ofício de um professor-pesquisador uma eterna
jornada. Uma mistura de humildade com realidade nos leva a entender que a
ciência inacabada e inacabável, como ele diz, deve ser novamente interpretada,
se iniciando, talvez, por sua des(singularização). Em outras palavras, a
ciência é plural. Se há pluralidade de ideias, haverá pluralidade de conceitos.
O fazer ciência vem de diferentes fontes, pessoas e campos do saber. Não há um
único conjunto de critérios de cientificidade. Não há uma abordagem
metodológica melhor que outra. Não há um grau correto de senso comum e um grau
correto de ideologia permitidos em uma investigação. O que temos de sobra são
problemas, leia-se perguntas, aguardando por soluções, leia-se respostas. É
isso que os pesquisadores precisam: fazer boas perguntas para que a partir
delas busquem boas soluções, tendo sempre como ótica a pesquisa que faz sentido
(ALPERSTEDT e ANDION, 2017). Nós fazemos ciência diariamente, seja em
laboratórios e com jalecos brancos, seja dentro da universidade, seja
interagindo com as nossas comunidades e organizações. Ciência se tornou um
termo rebuscado, distante e um tanto chique. Precisamos ressignificar a
ciência.
No campo musical, estilos são demarcados. No campo
artístico, obras são demarcadas. No campo da literatura, escritos são
demarcados. No campo social, muitas coisas são demarcadas por meio de políticas
públicas. E vamos com calma, pois demarcar não precisa ser sinônimo de um
pensamento reducionista e cartesiano, tampouco associado aos adjetivos que
citei no primeiro parágrafo de modo negativo. Como eu disse, façamos o
exercício de pensar na demarcação como uma ação de legitimidade interna para
diversas questões, não querendo excluir ninguém ou formar clubes que tendem a
se transformar em bolhas, mas mostrando o quão diverso é o campo científico e
que todos têm uma contribuição e merecem ser respeitados. Temos que aprender
que a demarcação na era da complexidade deve ser acompanhada de muito respeito
ao contraditório e abertura para o diálogo.
Eu, por exemplo, acho uma perda de tempo discutir se
Administração é ou não ciência. Perda de tempo no sentido de quem está contra
nós, pois aos que escrevem a favor e defendem nosso campo temos que agradecer
pelo esmero e paciência. Gostaria que alguém me explicasse o sentido em sermos
uma "ciência menor" sendo que, além de avançar o conhecimento
científico, trazemos soluções práticas ao mundo, diferente de muitos outros
campos do saber, diga-se de passagem. Não, não quis ser irônico. Eu consigo
compreender e respeitar que a ciência, por ser plural, cumprirá com sua função
social de diferentes formas, em maiores e menores graus. Pois avançar o
conhecimento científico, mesmo que sem aplicabilidade direta ou imediata,
também é uma função social. Enfim, mais do que divisões, precisamos nos unir.
Se o sistema de demarcações científicas funcionasse da forma que imagino, seria
incrível ver a união entre diferentes tradições, como aponta Kneller (1980),
seja para criar novas teorias arraigadas na heteronomia, seja para revisar
pressupostos de ambos os lados de forma colaborativa.
Kneller (1980) diz que levará muitos séculos para a ciência
alcançar completude em suas explicações para a ordem natural. Muitos séculos me
parece até otimista, visto que tendo a pensar que até lá, muitas outras coisas
já terão caído por terra e outras perguntas terão emergido. Os escritos também
se complementam pois ambos partem da premissa da autocrítica necessária aos
pesquisadores. É dela que virá nossa capacidade de crescer continuamente e de
contribuir para a evolução do campo científico. E é justamente o que estou
propondo neste pequeno escrito, que façamos uma profunda autocrítica.
Precisamos, o quanto antes, entender que partimos sempre de um objeto
construído, que temos visões de mundo e trajetórias diferentes e que nosso
fazer ciência nem sempre será igual. Contudo, isso não me faz melhor ou pior do
que outro cientista ou outra corrente de pensamento. Quando falo da demarcação,
penso ser uma forma legítima da ocupação do espaço científico pelas mais
diversas correntes, não havendo um limite, visto que a ciência, em si, é
ilimitada. Talvez seja uma forma de contribuir para o avanço da filosofia das
ciências (JAPIASSU, 1991).
Referências:
ALPERSTEDT, G. D.; ANDION, C. Por uma pesquisa que faça
sentido. Perspectivas. Revista de Administração de Empresas, São Paulo,
v. 57, n. 6, nov-dez. 2017, p. 626-631.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica
em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.
KNELLER. G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.
KNELLER. G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.
Nenhum comentário:
Postar um comentário