Tem
a ciência seu surgimento, conforme Kneller (1980), dos anseios, medos e
angústias humanas. É a tentativa de reduzir esses sentimentos, buscando ordem e
compreensão, que motiva e move a ciência para a frente (KNELLER, 1980), embora
devamos reconhecer que ainda hoje é a nós difícil tarefa conceituá-la, buscando
em alguns autores consagrados definições negativas (sobre aquilo que ela não é,
como em DEMO, 1985). Partiremos aqui do ponto de vista da ciência como
processo, expressamente mencionado por Demo (1985) e Japiassu (1991), de onde
prosseguiremos à análise.
Das
inúmeras tentativas de se buscar a ciência, os rumos que estas tomaram
dependeram de visões de mundo, contextos históricos, sociais e culturais em que
esses estudos emergiram e evoluíram (DEMO, 1985; KNELLER, 1980). Nas palavras
de Kneller, referindo-se às origens da ciência, “somos nós que vemos na obra
deles as características de uma ciência que eles mesmos não poderiam
reconhecer” (KNELLER, 1980, p. 14). A isso se relaciona a ideia de que a
própria demarcação e conteúdo da ciência muda ao longo do tempo, de suas
próprias transformações e do parâmetro sob a qual ela é analisada, argumentação
defendida por ambos os autores. Algo que já foi considerado ciência pode hoje
não o ser (embora importante que reconheçamos que, àqueles olhos, naquela
época, o era); algo que não era considerado ciência pode hoje, devido a nossos
avanços, tanto de conhecimento científico quando do próprio conteúdo da
ciência, sê-lo. E como toda ciência, em um eterno devir (JAPIASSU, 1991), pode
infinitamente sê-lo e deixar de sê-lo, tanto pela natureza do objeto, quanto
pelos olhos de quem vê.
É
daí que aproveitamos o espaço e ressalvamos, exemplificativamente, a afirmação
de Kneller de que “as explicações para o fracasso da China em criar uma ciência
moderna não provam que existia um caminho único para essa ciência, mas apenas
que a China não enveredou pelo caminho que adotamos” (KNELLER, 1980, p. 20),
manifestando seu posicionamento de que a ciência ocidental foi a mais
bem-sucedida. Pontos de vista à parte, pois cabe a ele colocar o que tem de si
e de seu vasto conhecimento naquilo que imprime aos outros, e ressaltando o
fato de que afirmamos o que segue, somente baseados no pontuamento específico
sobre o “fracasso da China em criar uma ciência moderna”, abrimos espaço ao
nosso, que ressoa: “ainda não conhecemos tudo”.
Embora
a obra de Kneller (1980) discuta a história da ciência, e o quanto ela depende
da lente que adotamos, muitas vezes olhamos para essa história e tiramos nossas
conclusões com um olhar fixo sobre o que é a verdade - e talvez um dia nos
impressionaremos se a nossa visão de ciência for mais a frente considerada
“geocêntrica” (o que poderia ocorrer com o “fracasso da China na criação de uma
ciência moderna”, de Kneller). Se assim for, bem-vindo seja o heliocentrismo,
ou qualquer coisa que venha após isso, que nos aproxime um pouco mais daquilo
que buscamos.
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Hilburn (2017) |
A
ciência, em sua procura pela verdade, busca não somente a verdade exterior como
a si própria e às suas definições, e lida com as suas próprias limitações, já
que analisa e faz parte do mundo que analisa (DEMO, 1985). Nesse contexto,
talvez, dentre os critérios internos e externos utilizados por Demo para
definir a ciência, o que mais reconheça essa condição seja a objetivação, o
esforço de “reproduzir a realidade assim como ela é; mais do que como
gostaríamos que fosse” (DEMO, 1985, p. 16).
A
precariedade do fenômeno científico e a relação interacional sujeito-objeto
torna tudo discutível e em aberto, já que o domínio da verdade só poderia ser
feito com olhar imparcial e objetivo (que, a nosso ver, escapa à razão humana,
pois teria o pesquisador que olhar o objeto vendo tudo dele e nada de si), e
ainda assim dentro de uma realidade imutável, o que contrasta com a natureza
transformacional das interações e fenômenos sociais, como bem salienta Demo
(1985).
A
realidade construída pela ciência acaba, pela nossa visão, em muito se
assemelhando com a visão que temos de nós mesmos somada à busca da “ilha
desconhecida”, de Saramago. Lidamos com o que podemos e com o que temos, cada
um à sua maneira, e preferencialmente sem perder o rigor daqueles que
fervorosamente buscam, cientes de que o conhecido de hoje (provavelmente) não é
o conhecido de amanhã. Reside aí a dificuldade de fronteiras na demarcação
científica da ciência. E quem delas precisa?
Referências:
DEMO,
P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica em ciências
sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
HILBURN,
Scott. [Imagem de rinoceronte pintor] In: HILBURN, Scott. The argyle
sweater. GoComics.com, June 2017. Disponível em:
https://br.pinterest.com/pin/ 574912708672035898/. Acesso em: 02/09/2019.
JAPIASSU,
H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao
pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p.
15-39.
KNELLER.
A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.
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