Pequeno ensaio produzido pelo aluno de mestrado Daniel de Souza Silva Júnior.
Cipião contou que, certa vez, Platão ou um dos filósofos da antiguidade grega foi levado por uma tempestade a uma praia desconhecida. Caminhando naquela deserta costa com alguns marinheiros, Platão viu figuras geométricas desenhadas na areia, ao que logo gritou “que fossem de bom ânimo, pois ele via vestígios de homens” (MAIA JUNIOR, 2016, p. 136). As inscrições na areia eram o sinal da ciência daquele homem antigo. Ao descobrir a razão, o homem grego intuiu formas e ideias do mundo real, estruturando um universo imaginário.
E quanto ao homem moderno? Que formas e ideias a racionalidade pós-renascentista o levou a intuir? Dito de outro modo, o que desenharia na areia o homem moderno, para que alguém exclame: “vê, isto é ciência, vestígios de homem!” O espanto cultivado pelos gregos na contemplação da realidade foi lentamente equipado com cálculos matemáticos, em tempos medievais, conduzidos por Bhaskara, Averroes e Johannes Widmann, mas que se tornaram rudimentares diante das formulações modernas de Gauss, Bernoulli, Poincaré e outros.
Aquelas formas na areia eram o sinal de vida da mente racional (logos) no mundo antigo, na qual a filosofia grega se debruçou. Um mundo construído sob uma plataforma mítica poética nas narrativas de Homero e Hesíodo, mas que teve grande progresso quando Tales de Mileto irrompeu o mistério e disse: “tudo é água”. Não que o homem grego tivesse os meios para se afastar por completo da influência dos deuses, mesmo porque, até Platão frequentemente recorria às mitologias, lembra Oliveira (2011). Mas o antigo grego trilhou o caminho da razão para saber os porquês do cosmos que o cercava.
Como resumiu Arent (2005, p. 279), “com o advento da modernidade, a matemática não somente amplia o seu conteúdo, mas o leva ao infinito para tornar-se aplicável”. Nos tempos de René Descartes, todo o corpo científico se concentrava na lógica, na álgebra e na análise dos geômetras. Assim ele disse:
quanto à lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabe. (...) Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação. Na segunda, há certas regras e certas cifras que fizeram dela uma arte confusa e obscura, que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. (DESCARTES, 1979, p. 37-38)
Diante de tais fragilidades dessas ciências, Descartes (1979) resolveu construir um método composto de quatro princípios. São eles: 1) jamais tomar algo como verdadeiro se não reconhecesse como tal; 2) dividir cada uma das dificuldades em várias partes para melhor resolvê-las; 3) ordenar os pensamentos, a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer; e, por fim, 4) estabelecer enumerações tão completas, de modo a garantir que nada fora omitido. Na era cartesiana, o homem moderno se atreveu a desnudar-se por completo para a racionalidade lógica: “nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno que é todo meu” (DESCARTES, 1979, p. 36). Em outra parte, Descartes completa: “compreendi então que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste somente no pensar” (DESCARTES, 2017, p. 40).
Fonte: La Nación (2018). |
A sofisticação calculista da mentalidade moderna se estabelece sob uma amálgama de técnicas, que acabam reduzindo os fenômenos a uma condição de validade ou invalidade. Não por acaso, nas notas de rodapé 2 e 3 de Bacon (1979, p. 5-6), o tradutor destaca que o filósofo utilizava os vocáculos “ratio” ou “via” no lugar da transcrição latina “methodus”, possivelmente para afastar de vez o silogismo dedutivo medieval. Bacon (1979) estava sinalizando que seu instrumento supremo era a razão, e assim como para os serviços braçais as ferramentas são necessárias, na intelectualidade os métodos são indispensáveis. Se Crombie estava equivocado quanto à supremacia da abordagem quantitativa frente à qualitativa, ou mesmo enganado quanto à origem da ciência moderna, como bem destacou Koyré (2011), o historiador australiano acertou no que tange a metodologia moderna, pois, a matematização das abstrações é o maior produto da ciência moderna.
No fim, se o homem moderno estivesse naquela ilha deserta da qual Cipião falou, talvez ele inundasse a vasta costa praiana de algoritmos matemáticos com fórmulas, ábacos e tabelas dinâmicas. Estabeleceria vetores, mediria grandezas e representaria conceitos e postulados com operações matemáticas precisas. Tanto Descartes quanto Francis Bacon tentaram traspassar esta matematização, resumindo tudo a uma questão de método para conhecer a realidade. Todavia, nas areias da praia, o homem moderno segue desenhando fórmulas, mas sem encontrar a realidade. Como se diria, “é homem porque os animais não podem fazer cálculos tão complexos”. Porém, seria isso uma ciência?
Referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BACON, Francis. Novum organum. In: BACON, Francis. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 1-21.
DESCARTES, René. Discurso do método. In: DESCARTES, René. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
___. Discurso do método. São Paulo: Lafonte, 2017.
KOYRÉ, Alexandre. As origens da ciência moderna: uma nova interpretação. In KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
LA NACIÓN. [Imagem de René Descartes]. Qué es y qué no es: el sueño de René Descartes que revolucionó las matemáticas. BBC News, 25/11/2018. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/que-es-y-que-no-es-el-sueno-de-rene-descartes-que-revoluciono-las-matematic-nid2196130>. Acesso em: 06/09/2019.
MAIA JUNIOR, Juvino Alves. De re publica, de Cícero. João Pessoa: Ideia, 2016.
OLIVEIRA, Richard Romeiro. As relações entre a razão e a cidade nas “leis” de Platão. Belo Horizonte: Loyola, 2011.
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