Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Ricardo Lonzetti
Uma abordagem
de pesquisas que se incluem no campo dos estudos sobre mudanças em políticas
públicas é a análise das discussões e do processo decisório que ocorre em
eventos constituídos para debater e elaborar as propostas reformistas e, assim,
descrever as propostas de mudança, os atores e instituições envolvidos, seus
interesses e as dificuldades encontradas para que haja consenso para a
consecução de determinada política. Tais pesquisas buscam contribuir para a
compreensão tanto da mudança quanto da dinâmica e da estabilidade da agenda de
determinada política pública. Isso pode ser alcançado tendo-se como foco a
análise do papel das crenças, ideias e valores que a direciona.
O estudo do
processo de formação da agenda de políticas públicas, a propósito, pode subsidiar
a elaboração de políticas, aumentar a eficiência na alocação dos recursos pelos
agentes privados ou ainda ajustar as contas públicas. Schneider e Ingram (1997)
elevam o status e a importância das políticas públicas para além de
instrumentos técnicos que podem ou não resolver os problemas contemporâneos. Políticas
públicas são, assim, ferramentas para assegurar os valores democráticos para
todos. Esta visão, corroborada por Sidney (2007), reclama por análises que se
preocupem não só em demonstrar o quão efetivamente políticas públicas podem
mitigar problemas sociais, mas em demonstrar o grau em que promovem os valores
democráticos, ou seja, inspiram a participação política e desencorajam a
divisão social.
Para que se proceda tal análise, é apropriada a abordagem teórica do Modelo de Coalizões de Defesa (ACF), elaborado por Sabatier (1993) e pesquisadores associados, em especial Hank Jenkins-Smith, como suporte consistente para a compreensão das mudanças na agenda da política e dos atores e instituições envolvidos na sua conformação. Agenda, aliás, conforme Kingdom (1995), se refere à lista de assuntos ou problemas para os quais atores, governamentais e não-governamentais associados àqueles, estão prestando atenção em determinado momento. Desse modo, conforme proposto pelo ACF, se reconhece que tais atores integram subsistemas de políticas, de modo que o conceito de agenda é tratado como o conjunto de temas que são alvo da atenção dos integrantes dos subsistemas de políticas públicas.
Muito da
ênfase do ACF é na estrutura das crenças das coalizões de defesa competitivas e
nos padrões de mudança dessas crenças. O Modelo busca auxiliar na compreensão
de quadros complexos de políticas, permeados por atores que percebem o mundo de
acordo com distintas e particulares visões, moldadas pelos sistemas de crenças.
O modelo apresenta uma perspectiva integradora, que abarca aspectos importantes
da realidade complexa e mutável que marca a formulação de uma política pública,
dando especial atenção aos sistemas de crenças hierarquicamente estruturados,
os valores e ideias que os suportam, assim como aos efeitos de eventos exógenos
que podem explicar mudanças nesta política. Contudo, em geral, as pesquisas que
adotam o Modelo não integram a dimensão institucional para proceder a análise -
para fins de objetividade, imagino.
Devo reconhecer que o
processo de formação de agenda é essencialmente um processo político, porque é conduzido
por meio da negociação entre múltiplos e concorrentes interesses. Esse
reconhecimento é suportado no entendimento proposto por Laswell (1958), de que
de política é o processo por meio do qual a sociedade determina quem consegue o
que, quando isso é alcançado e como se chega ao resultado esperado. Embora essa
seja uma definição simples, podemos discernir, em seus próprios termos, três
aspectos essenciais da política: a competição para se obter certos recursos -
às vezes à custa dos outros, a necessidade de se cooperar para tomar decisões,
e a natureza do poder político.
O processo de
tomada de decisão a respeito de uma política pública, desse modo, ocorre em
estruturas institucionais específicas, que dirigem, conformam e constrangem a
abrangência das escolhas e resultados. Devo reconhecer, portanto, que arranjos
políticos institucionais afetam de forma significativa os processos de política
e seus consequentes resultados, incluindo a escolha de determinada alternativa
pelos tomadores de decisão (policy makers), quais os interesses são
representados ou quais os são os passos ou processos por meio dos quais as
decisões são ou não são tomadas. Toda forma de decisão política, portanto, conforme
lembrado por Ostrom (1990), pode ser vislumbrada como feita dentro de alguma
forma de um arranjo institucional, que, por sua vez, afeta o comportamento
individual e, por consequência, das coalizões.
Cada uma dessas questões
opera em ambientes políticos complexos e interdependentes, onde muitos
participantes interagem no contexto de arranjos institucionais aninhados,
relações de poder desiguais e informações científicas e técnicas incertas sobre
problemas e alternativas. Os autores do ACF, contudo, argumentam que esta
complexidade inerente às políticas públicas requer uma simplificação conceitual
para orientar as agendas de pesquisa, permitir a comunicação entre acadêmicos e
profissionais e desenvolver estratégias efetivas de tomada de decisão. Esse é
um ponto de vista reducionista, convenhamos. Reconhecer a questão institucional
é mais do que considerar as instituições como outra variável que deve ser
adicionada à multiplicidade de outros fatores de potencial relevância nos
estudos a respeito do processo de políticas públicas.
As instituições, entendidas
como procedimentos formais e informais, rotinas, normas e convenções inseridas
na estrutura organizacional, estruturam a relação entre os muitos outros
fatores de maneiras que podem afetar significativamente os resultados
esperados. De acordo com Steinmo et al. (1992), as variáveis institucionais
influenciam a agregação de preferências, regulam a velocidade do processo
político, fornecem aos atores pontos de veto e equilibram as relações de poder
dentro do sistema político. Instituições, além disso, definem quem são os
atores que precisam aceitar uma proposta de solução para que determinada
política seja implementada. De outro modo, os autores dessas soluções definem
estratégias que os empreendedores de políticas podem empregar para obter o
consentimento dos atores com poder de veto.
Entendo,
desse modo, que as ideias de Bourdieu (1990) ajudariam não apenas identificar e
descrever valores, opiniões e ações de diferentes atores numa situação, mas sim
explicar as estruturas sociais que estão ligadas à possibilidade de surgirem
esses valores, opiniões e ações. Ou seja, se aplicarmos tais ideias ao processo
político e, consequentemente, à mudança política, poderíamos compreender as
estruturas sociais que determinam e produzem valores, opiniões e ações das coalizões
dominantes num subsistema político. Desse modo, poder-se-ia demonstrar como a
mudança política resulta quando houver uma mudança nas estruturas sociais
ligadas ao campo do subsistema político, permitindo que um grupo de indivíduos compartilhe
os mesmos valores e os torne dominantes.
O trabalho de
Bourdieu se caracteriza pelo fato de propor uma alternativa ao debate clássico
entre o objetivismo (estruturalismo) e o subjetivismo (construtivismo) nas
ciências sociais. Sugere, assim um "construtivismo estruturalista". O
que significa que a realidade social é historicamente construída e é formada
por estruturas cujas práticas moldam as ações e as percepções do indivíduo.
Em outras
palavras, as ações, os valores e as percepções dos indivíduos não são
produzidos individualmente por uma ligação às estruturas sociais, ao subsistema
político, por exemplo, mas são o resultado de disputas entre indivíduos e são socialmente
construídas. Cada subsistema de política, ou ‘campo’, para usar um temo do
autor, tem as suas próprias regras (doxa) e estrutura. Os indivíduos que
pertencem a um campo, ou melhor, agentes, estão envolvidos e acreditam nas
regras do campo (illusio). O campo, assim, seria composto por diferentes
agentes, cuja posição social depende da sua quantidade de capital, seja
econômico, simbólico ou técnico. Em função da sua posição num campo e da sua
posição noutros campos e trajetórias, os agentes desenvolvem determinados
valores, crenças e opiniões integrados num sistema de percepção e ação (habitus).
Imagino enfim,
concordando em partes com os autores do ACF, que considerar o aspecto
institucional e trazer sua inerente complexidade à análise de políticas públicas requer uma sofisticação
conceitual que se traduz em um desafio na orientação das agendas de pesquisa, na
comunicação entre acadêmicos e profissionais e no desenvolver estratégias
efetivas de tomada de decisão. Por outro lado, num primeiro momento, o
entendimento das estruturas sociais e das instituições pode colaborar
significativamente análise de uma política pública e, em um outro momento, na sua
própria elaboração e desenvolvimento.
Referências
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico.
14ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
LASSWELL, Harold D. The Decision Process. Seven
Categories of Functional Analysis, College Park: University of Maryland Press,
1956.
OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The
Evolution of Institutions for Collective Action. New York: Cambridge University
Press, 1990.
SABATIER, Paul A.; JENKINS-SMITH, Hank C.
(Eds.). Policy Change and Learning: An Advocacy Coalition Approach. Boulder:
Westview Press, 1993.
SCHNEIDER, Anne Larason; INGRAM, Helen. Policy
Design for Democracy. Lawrence: University of Kansas Press, 1997. 241 p.
SIDNEY, Mara S. Policy Formulation: Design and
Tools. In: FISCHER, Frank; MILLER, Gerald J.; SIDNEY, Mara S. (orgs.). Handbook
of public policy analysis: theory, politics and methods. Boca Raton / London /
New York: CRC Press, 2007.
STEINMO, Sven; THELEN, Kathleen; LONGSTRETH,
Frank. (Eds,). Structuring Politics - Historical institutionalism in
comparative analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
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