Como é possível compreender o êxtase e a intimidação que a experiência de contemplar uma aurora boreal pode oferecer? Ou então, o hipnotismo causado ao ouvir o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky? Esses questionamentos incitam a reflexão acerca da beleza como necessidade intrínseca da natureza humana, e como ela pode ser analisada e compreendida sob diferentes correntes do pensamento filosófico. Em tempos onde a literalidade e o objetivismo ganham espaço frente ao simbólico e ao subjetivo, resgatar a valorização do belo como forma de conexão através de valores compartilhados é discutir a própria existência humana.
Scruton (2013) vai além e questiona até se a beleza seria um valor universal, um remédio para uma vida repleta de caos e sofrimento. Apoiando-se em argumentos de Platão e Kant, o autor reflete que a experiência da beleza vêm quando abandonamos nossos interesses, quando olhamos para as coisas não com a intenção de usá-las para nossos propósitos, explicar como elas funcionam, ou satisfazer alguma necessidade ou desejo, mas apenas para observá-las e assimilar o que elas são.
A sensibilidade ao belo de certa forma caracteriza a capacidade do homem de racionalizar, indo além dos sentidos. Afinal de contas, não observamos nos animais a capacidade de admiração e contemplação da beleza natural como um pôr do sol, fenômeno esse que ao homem pode provocar um senso de harmonia, conformidade e pertencimento e algo maior que a sua própria existência.
Fonte: Shutterstock (2019). |
Esse entendimento do termo “fenômeno” utilizado por Kant como a realidade que se mostra para a nossa consciência carrega uma distinção entre o fenômeno e o objeto em si. Sob a ótica fenomenológica de Husserl (2008) não há esta divisão, onde o fenômeno é considerado do modo como ele aparece em si mesmo, onde não há somente a representação da coisa observada, nem mesmo somente a coisa em si, mas a coisa como é revelada à consciência.
Relacionada a essa capacidade de ser sensível ao belo há uma intencionalidade específica envolvida como parte de uma vida cognitiva. Somente criaturas como nós, com linguagem, auto-consciência, razão prática e julgamento moral, podem observar o mundo desta forma alerta e desinteressada, de modo a capturar o objeto apresentado e extrair prazer dele por meio da contemplação, não apenas do desejo.
Essa intencionalidade é o que define para Husserl (2008) a consciência, pois toda consciência é consciência de algo. A intencionalidade, ponto central da fenomenologia, é um modo de ser da consciência enquanto um transcender em direção à outra coisa, onde todas as experiências carregam de certa forma alguma intencionalidade. O objeto só pode ser definido também em relação a consciência, pois todo objeto é objeto para algum sujeito. Nessa perspectiva, o método fenomenológico como instrumento para conhecer a essência das coisas e da própria consciência dá sentido à compreensão de realidade para Husserl, onde a beleza se compreende como um conjunto de significações e sentidos.
A confrontação com a beleza é imediata, vívida e pessoal, sendo capaz de nos conectar com o mistério máximo da existência, trazer à presença do sagrado e talvez até nós aproximar de uma verdade universal. Em tempos difíceis, guiados pela falta de compreensão, empatia e senso de unidade, seria a beleza um caminho para nos reconectar enquanto humanidade?
“...A beleza é verdade,
A verdade é beleza,
Isto é tudo que conheceis sobre a Terra
E é tudo o que precisamos conhecer...”
(John Keats)
Referências:
HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
KANT, I. Crítica da razão pura. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
SCRUTON, R. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013.
SHUTTERSTOCK. [Imagem de pessoa contemplando a aurora boreal.] In: SHEPERT, Elana. Vancouver is awesome. Vancouver News, 30/08/2019. Disponível em: <https://www.vancouverisawesome.com/2019/08/30/northern-lights/>. Acesso em: 01/11/2019.
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