O argumento que será defendido nesse paper, sustenta-se na afirmação de que Ciências Naturais e Ciências Sociais se
inter-relacionam a todo momento, sujeitos e objetos se misturam o tempo todo e
a formação de híbridos é inevitável. Para reforçar tal afirmação, serão
utilizadas a Teoria dos Ecossistemas (Lévesque, 2004; Stam, 2015) e a obra do
escritor Gabriel García Márquez, Cem anos de Solidão (1967).
A “Demarcação Científica” (Demo, 1986)
e a “Guerra das Ciências” (Nunes, 2004) contextualizam a já antiga batalha entre os “gêmeos” Natureza e
Sociedade (Latour, 1994, p.38), que tal como Caim e Abel, vivem em
conflito, apesar de terem dividido o mesmo ventre. O fato de ambos coexistirem
e viverem em constante enfrentamento remete à Teoria de Ecossistemas (Lévesque,
2004; Stam, 2015), originada no campo da Biologia, que traz a concepção de Ecossistema como uma representação particular de
sistema, que possui um nível de complexidade elevado, por se basear em relações
e atores interdependentes. Por isso compreende-se que, por mais que um
ecossistema possa parecer em equilíbrio, na verdade ainda é relativamente instável ou pelo menos vive em
constante movimento.
Insistir na existência
da dicotomia entre Natureza e Cultura é inviável, se partirmos da concepção de
que a própria Ciência, em sua totalidade, consiste num Ecossistema. Chamaremos
aqui de “Ecossistema das Ciências”.
Por suas naturezas, as Ciências jamais viverão em um equilíbrio constante, pois
se movimentam e se cruzam a todo instante, combinando elementos do passado com
os do presente. Os textos produzidos pela linguagem do passado tem sua
interpretação transformada a cada momento, e não é possível culpá-los pelo
morfismo daquilo que é humano e daquilo que não é.
Trazendo um exemplo
mais didático, o livro Cem anos de Solidão (Márquez, 1967), que relata a história da família
Buendía, acentua em algumas passagens a trajetória de Natureza e Sociedade como
algo que se mistura. Já de início, é apresentada a árvore genealógica dessa
grande família, ilustrando metaforicamente a união de sujeito - os membros da
família - e “coisa” - a árvore e suas raízes.
Enquanto a história da família vai
sendo contada, também é possível identificar interpretações das Ciências e de
seus significados no decorrer do texto. É interessante perceber como, em algumas
passagens, o caráter híbrido das duas Ciências (Naturais e Sociais) fica
evidente. O Quadro 1 explicita esse cenário em algumas frases, que muito se
assemelham ao que é relatado por Latour (1994).
Quadro 1 - Citações do livro Cem anos de Solidão e suas interpretações
Citação
|
Interpretação
|
Nicanor levou-lhe então medalhas
e figurinhas e até uma reprodução da fazenda da Verônica, mas José Arcadio
Buendía repeliu-os por serem objetos
artesanais sem fundamento científico. [...], mas então foi José
Buendía quem tomou a iniciativa e tentou quebrantar a fé do sacerdote com
artimanhas racionalistas. Certa ocasião em que o Padre Nicanor levou ao
castanheiro um tabuleiro e uma caixa de pedras para convidá-lo a jogar damas,
Arcadio Buendía não aceitou, segundo disse, porque nunca pôde entender o sentido
de uma contenda entre dois adversários que estavam de acordo nos princípios.
O Padre Nicanor, que nunca tinha encarado desse modo o jogo de damas, não
pôde voltar a jogar. (p.93)
|
Os pré-modernos (Nicanor), que sempre conectam
coisas e signos, e os modernos (José Buendía), racionalistas adeptos da
experimentação.
|
“A troco de cinco pesos, as pessoas chegavam até
a luneta e viam a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Daqui a
pouco o homem vai poder ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem
sair de casa”.” (p.08)
|
A Ciência dos modernos, tida como um progresso, uma solução final.
|
O Sr. Apolinar Moscote teve
dificuldade de identificar aquele conspirador de botas altas e fuzil
pendurado no ombro com quem tinha jogado dominó até às nove da noite. — Isto
é um disparate, Aurelito — exclamou. — Disparate nenhum — disse Aureliano. —
E a guerra. E não torne a me chamar
de Aurelito, porque já sou o Coronel Aureliano Buendía. (p. 115)
|
A influência de conflitos políticos na vida das pessoas. Aureliano é
um personagem que passa de cientista a Coronel, movido por suas paixões
ideológicas.
|
“As coisas têm vida
própria” - apregoava o cigano com sotaque áspero - “é só uma questão despertar
suas almas.” (p.07)
|
A sabedoria popular e seu apego aos atores não-humanos.
|
“E assim continuaram vivendo numa realidade
escorregadia, momentaneamente
capturada pelas palavras, mas que fugiria sem remédio quando fosse
esquecido o valor da letra e da escrita.” (p.56)
|
O caráter relativista dos pós-modernos, considerados por Latour
(1994), um “sintoma” do modernismo.
|
“[...] de jeito nenhum - corrigiu Melquíades -
está comprovado que o demônio tem
propriedades sulfúricas, e isto aqui não passa de um pouco de sublimado
corrosivo.” (p.13)
|
A mistura daquilo que é místico e cultural (a figura do demônio) com
aquilo que é científico e lógico (o sublimado corrosivo): O surgimento dos
híbridos.
|
Fonte: Elaboração própria (2018).
Buscou-se utilizar a obra do escritor
colombiano - que, por coincidência (ou não), pertence ao realismo fantástico,
movimento literário que buscava retratar o Homem e suas capacidades, em
conjunto com elementos fantasiosos e místicos -, não só como um instrumento
didático, mas também como um reforço ao pensamento de Latour (1994), ao dizer
que as Ciências não se explicam apenas através dos experimentos realizados em
laboratórios e da linguagem técnica utilizada nesse meio, mas também através da
cultura popular, das estruturas e momentos políticos, da linguagem acessível,
da fantasia.
Por perceber as conexões entre Ciências Sociais e Ciências Naturais e entre o que é humano e não-humano, as consequências das práticas realizadas dentro desse “Ecossistema das Ciências” tornam-se, por muitas vezes, híbridas. A utilização da literatura e de artefatos históricos para contextualizar momentos políticos, o impacto dos fenômenos naturais na criação de novas ferramentas que auxiliem uma comunidade, o uso da tecnologia para promover causas sociais, a medicina tradicional e a Naturopatia, a sabedoria do Oriente e do Ocidente, tudo isso, forma um ambiente complexo, afetado a todo tempo por interpretações do passado e previsões do futuro, e que vive em constante movimento, com as mais variadas e fantásticas combinações.
Por perceber as conexões entre Ciências Sociais e Ciências Naturais e entre o que é humano e não-humano, as consequências das práticas realizadas dentro desse “Ecossistema das Ciências” tornam-se, por muitas vezes, híbridas. A utilização da literatura e de artefatos históricos para contextualizar momentos políticos, o impacto dos fenômenos naturais na criação de novas ferramentas que auxiliem uma comunidade, o uso da tecnologia para promover causas sociais, a medicina tradicional e a Naturopatia, a sabedoria do Oriente e do Ocidente, tudo isso, forma um ambiente complexo, afetado a todo tempo por interpretações do passado e previsões do futuro, e que vive em constante movimento, com as mais variadas e fantásticas combinações.
REFERÊNCIAS
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São
Paulo: Atlas, 1985.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LÉVESQUE, Benoît. As inovações sociais podem contribuir para
transformações, mas isso não é tão evidente. Revista Ciências em Debate, v. 1, n. 2, p. 179-199, 2014.
MÁRQUEZ, G.G. Cem Anos de Solidão.
91. ed., Editora Record: Rio de Janeiro, 2015.
NUNES, J.A. Um discurso sobre as ciências 16 anos depois. In: SOUSA
SANTOS. B. Conhecimento Prudente para
uma Vida Decente. São Paulo: Cortez, 2004, p. 59-62.
STAM, E. Entrepreneurial Ecosystems and Regional Policy: A Sympathetic Critique, European Planning Studies, vol. 23 n. 09, p. 1759-69, 2015.